A inspiração deste texto vem de uma frase de Lia Osório Machado que recordo ao pensar como culturas expansivas desbravam os espaços, resultando em novas construções territoriais: “as delimitações administrativas são decisões dos Estados, mas as fronteiras são obras dos povos”.
A reflexão sobre a divisão territorial do Pará vem de uma condição privilegiada de ter vivido o início da minha adolescência em Marabá (PA), antes da chegada da Transamazônica, tendo visto as transformações ocorridas no Sul e Sudeste do Pará (que hoje pleiteia se tornar Estado de Carajás) em seu doloroso processo de integração à economia nacional. Ter vivido em Goiânia (GO), em meados da década de 1970, quando trabalhadores goianos (muitos desgarrados das atividades camponesas por essa época), lotavam ônibus para os garimpos de Redenção (PA) e para as primeiras fazendas no Sul do Pará e que por lá ficaram. Ter morado em Belém durante a maior parte da minha vida adulta e assistido à expansão urbana na periferia, ocupada também por trabalhadores egressos de Carajás, Tucuruí e Serra Pelada.
Nascida em Santarém, morei também no Maranhão quando aquele estado exportava trabalhadores para a Amazônia, deixando uma sociedade empobrecida pelos latifúndios. Em Brasília, pude presenciar a arrogância da tecnocracia com as regiões periféricas e, tendo retornado ao Oeste do Pará, me deparei com a veemência da luta pela autonomia.
Vi de perto as áreas de colonização nas rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá, que cortam o Centro-Sul do Estado do Pará, por cerca de 1.000 km no sentido Leste-Oeste e quase a mesma extensão no sentido Sul-Norte, respectivamente.
São mais de 50 anos de transformações profundas ocorridas no vasto território paraense, de 1.247.689,515 km², que se converteu, no final do século passado, num espaço de oportunidades para o crescimento econômico das regiões mais ricas do país e de economias globais.
Julgar as razões da emancipação exige uma reflexão que uma campanha não irá suprir. Que projetos estão presentes e podem emergir nesse conflito velado há tanto tempo e revelado pelo plebiscito que acontecerá em 11 de dezembro? São legítimos os pleitos de Carajás e Tapajós em defender a sua emancipação, assim como a paixão da região da capital que se vê afrontada com o fato de que mais de 70% de seu território é habitado por paraenses que não se vêm representados pela sua capital.
O Pará se defronta com um dos momentos mais dramáticos e inevitáveis de sua história e da história econômica, social e cultural do Brasil. Além dos paraenses originários, serão os brasileiros de todo o país, acolhidos e com direito de voto no Pará, que indicarão seu destino.
Breves notas sobre a relação do Pará com o Brasil
Os primeiros paraenses foram os indígenas, africanos e seus descendentes, portugueses, judeus, árabes e migrantes nordestinos atraídos pelas economias extrativas. Antes das estradas, os paraenses viviam nas cidades e no interior do estado, com acesso exclusivo pelas vias fluviais. Descendiam de relações econômicas e sociais herdadas dos séculos XVIII e XIX, quando a miscigenação foi acrescida pela presença nordestina, na economia da borracha. Belém e Manaus foram as capitais para onde afluíam as relações mercantis e os serviços de educação e trabalho especializados.
O Pará atual resulta do projeto desenvolvimentista planejado a revelia e pactuado com as elites políticas da capital, ignorando a população originária e a do interior e, mais tarde, também os migrantes atraídos pelas oportunidades difundidas pela propaganda estatal. A integração nacional proporcionou melhorias para os setores das classes ricas e médias urbanas. Mas a maioria, inclusive da que chegava, ficou à margem da prosperidade.
O Pará foi um dos estados que mais sofreu o impacto de ocupações espontâneas e de colonizações estatais e privadas resultantes da concentração agrária da parte industrializada e do nordeste do país. Nos anos 1970 e 1980, o Estado se tornou fornecedor de energia, matérias-primas minerais e florestais e espaço de acomodação da pecuária de Goiás, de Minas Gerais e de São Paulo.
Dessa forma, o Pará contribuiu para o crescimento do PIB nacional com base numa ocupação predatória dos seus recursos naturais; de assassinatos de trabalhadores, religiosos e de políticos progressistas; da invasão e desestruturação de povos e terras indígenas que tornaram o Estado joqscxcegsíntese dos conflitos da sociedade nacional.
Como todos os estados da Amazônia, o Pará teve seus espaços reconfigurados e resignificados culturalmente no final do século passado, num contexto de disputas por recursos naturais e territórios habitados tradicionalmente por populações oriundas de ocupações antigas.
A maioria dos migrantes, mesmo os estabelecidos há 60 anos, podem se sentir territorialmente paraenses, mas não integrados a um único Estado. Permanecem divididos entre seus Estados de origem e um futuro, para eles, instável no Estado que lhes abrigou. Goiânia, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro são as principais capitais para onde escoam os lucros gerados com a pecuária, a madeira, a agricultura e a mineração do Sul e Sudeste do Pará, mas também as poupanças das classes menos capitalizadas. Teresina, Goiânia e São Luis são procuradas para a assistência médica.
A partir da década de 2000, a integração entre o Pará e o país foi fortalecida, com o asfaltamento da Transamazônica e Santarém-Cuiabá; as Eclusas de Tucuruí; a criação da ALPA (Aços Laminados do Pará) ; a multiplicação de Institutos Federais de Educação; a criação duas universidade federais (Santarém e Marabá); e as instituições federais antes subordinadas a Belém (INCRA, IBAMA, ICMBIO, entre outros).
As redes de relações econômicas e de cidades estabelecidas e, agora as conectividades viárias e o fortalecimento das instituições não consolidaram os laços com Belém, mas sim com os centros dinâmicos que historicamente presidiram as relações entre essas regiões e as capitais “naturais” que elegeram. Marabá e Santarém estão localizadas cerca de 800 km mais próximas do Centro-Sul do que a capital paraense.
O caso do Tapajós
O interesse pela emancipação do hoje pretendido Estado do Tapajós remonta o século XIX, num contexto de desintegração do governo colonial e do Grão-Pará e Maranhão . Situada no centro da Amazônia e com acesso mais difícil, essa região preservou ambientes naturais, populações originárias e economias de base mercantil, mesmo com a presença ascendente de enclaves mineradores.
As relações econômicas, os vínculos de trabalho, familiares e culturais se consolidaram muito mais com Manaus do que com Belém. A ZFM – Zona Franca de Manaus se constituiu na principal empregadora da força de trabalho (primeiro não qualificados, atualmente, também especializada) do Baixo-Amazonas e Tapajós. A capital do Amazonas é a maior catalisadora da dinâmica socioeconômica dos rios na fronteira entre os dois estados.
Embora subjacente ao modelo de desenvolvimento, a maior investida da economia madeireira e do agronegócio, se manifestou mais agressivamente nas décadas de 1990\2000. Porém, o ordenamento territorial realizado nos governos Lula, com grande empenho da ex-Ministra Marina Silva, permitiu a contenção da especulação das florestas públicas e criou canais institucionais para o debate do asfaltamento da BR-163 .
Nessa região estão presentes as maiores TI-Terras Indígenas e o maior número de UCs-Unidades de Conservação federais. Mesmo sob pressão, como ocorre em todas as áreas preservadas do país, o ambiente institucional do presente contribui para manter o que foi conservado historicamente pela sociedade local. O novo Estado será favorecido por um ambiente de governança superior ao que ocorreria se a emancipação ocorresse dez anos atrás. Os conflitos e as ameaças de degradação ambiental são problema de gestão, que continuará compartilhado com o governo federal.
Embora situada no centro da Amazônia, a localização geográfica dessa região apresenta conectividades com o Centro-Sul do país pela BR-163, com a Amazônia Ocidental, os países fronteiriços do Pacífico, pela Rodovia Transamazônica e com os portos da Europa e Leste dos EUA, pelo porto de Santarém. A região é estratégica nas relações comerciais com Belém, Altamira, Marabá, Macapá, Porto Velho e Manaus.
Três formas de ser paraenses
Faz parte do ethos da sociedade dominante na região de Carajás, considerar o Pará antigo, distante do ritmo de progresso e de consumo já alcançado em seus estados de origem. Esse ethos é retroalimentado por laços de família que subsistiram.
Mas, dessa sociedade também fazem parte povos indígenas, ribeirinhos, extrativistas, populações urbanas, camponeses e intelectuais ativos na disputa de projeto de desenvolvimento. Nessa região houve a maior reconquista da terra ocupada por grandes fazendas, a partir da luta camponesa, com o maior número de projetos de assentamento de reforma agrária do país.
No ethos da sociedade que pleiteia o estado do Tapajós, é forte a idéia de uma identidade local e regional arraigada historicamente, com fortes laços internos na sua formação social, na sua economia e na sua organização social. A visão de desenvolvimento na sociedade mais antiga passa, em grande medida, pelo conhecimento, pelo progresso cultural e por uma economia em bases diversificadas.
Mais recentemente, ganhou força entre os setores políticos conservadores, a visão redentorista do agronegócio. Mas, também emerge a visão de desenvolvimento sustentável como cenário futuro, justamente pela oportunidade da região deter mais de 80% de sua cobertura florestal preservada e uma das maiores diversidades étnicas e sociais da Amazônia. Essa característica determinou uma forma menos passiva da sociedade civil da região, diante do avanço da produção de grãos, que foi contida.
No norte do Estado, hegemonizado pela capital, se destaca a visão autocentrada da condição de metrópole comercial, intelectual, cultural e política. Dessa posição, Belém não se deu conta de que o projeto nacional que interviu no interior do seu território, criou forças econômicas, sociais, culturais, políticas e intelectuais com voz própria.
Com a emergência de novos atores, a elite do norte do Estado recompôs suas alianças de poder com as lideranças políticas do Sul e do Oeste do Estado (essas mais antigas). Porém, essas alianças não impediram a fratura política entre as próprias elites sobre a autonomia dos territórios. O desejo de emancipação está acima de pactos conjunturais de poder, foge ao domínio das elites, das esquerdas e dos grupos conservadores. Os partidos de esquerda e os conservadores da capital, no governo, trabalham para neutralizar a divisão territorial.
O Pará cruzou o século XX aprofundando uma divisão territorial de fato, gestadas pelo projeto nacional e por relações de dominação estabelecidas com as regiões tradicionalmente habitadas. A capital do Pará não conseguiu em mais de cem anos, neutralizar nem a vontade emancipacionista do Tapajós e nem a inevitável vontade de autonomia das forças migratórias mais recentes.
Questões que mobilizam o debate na campanha
Este texto não entra na guerra dos números, pois se considera de antemão que, os três Estados são viáveis e têm condições e vantagens comparativas superiores, em relação a outras situações de emancipação já ocorridas no Brasil. Os custos da implementação dos novos estados devem ser considerados como repartição de benefícios federativos, tendo em vista a contribuição do Pará para o crescimento de outros estados, inclusive por força da Lei Kandir.
O discurso anti-emancipacionista não apresenta nenhuma utopia ou promessa capaz de mobilizar os anseios dos seus 7,5 milhões de habitantes. Não se visualiza uma alteração no grave quadro socioeconômico e nem a partilha mais justa de benefícios entre a metrópole e as regiões que desejam emancipar-se.
Existem defensores da divisão em todos os partidos. Não existem blocos ideológico -programáticos em torno do SIM ou do NÃO. Assim como, o equilíbrio na composição de forças entre visões progressistas, oligárquicas e neoliberais está presente nos três territórios, em conflitos e acomodações iguais ao que acontece em todos os estados brasileiros.
A população do Tapajós e do Carajás teme que, sem a emancipação, os investimentos permaneçam favorecendo a região hegemonizada pela atual capital, detentora do maior número de eleitores, com poder de voto e de veto na partilha das políticas públicas e do orçamento comum do Estado .
Previsões sobre o risco de se criar estados pobres não se sustentam, assim como as avaliações que reduzem o potencial econômico de um futuro Estado de Carajás aos estoques minerais. Pesca, aquicultura, pecuária , agricultura, castanha-do-Brasil, energia hidrelétrica e reflorestamento estão entre as atividades para um desenvolvimento inteligente e duradouro no novo estado.
No caso do Tapajós, por ser composto de cerca de 80% de florestas, alguns dizem que teria sua economia engessada e outros afirmam que as florestas seriam destruídas. Como em todo lugar, essas forças estarão concorrendo, mas há que se valorizar o esforço das populações locais, que conservou esses ativos diante da pressão externa.
A riqueza florestal representa uma oportunidade. No Acre, há quase vinte anos de projeto econômico com floresta em pé, emergem indústrias em parcerias público-privadas e comunitárias promissoras e inclusivas. Florestas e biodiversidade são um capital valorizado pelo emergente mercado de carbono e futuras economias verdes, assim como valor nos modos de vida das populações tradicionais e indígenas. Uma base industrial centrada na biotecnologia no centro da Amazônia é perfeitamente compatível com a modernização de sua produção agropecuária, que está preparada para elevar produtividade em bases sustentáveis.
A incorporação produtiva das imensas áreas de várzea da calha do rio Amazonas à produção de alimentos é um trunfo econômico para o novo Estado. Assim como, os recursos aquáticos diversificados, com práticas de manejo reconhecidas.
O estado do Tapajós pode nascer com um diferencial muito positivo para o Brasil. Vir a ser o grande laboratório nacional do desenvolvimento sustentável, com a ampliação dos centros de pesquisa, de produção de conhecimento e informação, um Polo Industrial de Biotecnologias, assim como um polo turístico amazônico de fácil acesso. Não faltam utopias e este é um grande passo para que os novos estados nasçam antenados com as oportunidades próprias do nosso tempo. Uma marca invejável para territórios emergentes no século XXI.
Conclusões
Não existe um só Pará, há pelo menos, 60 anos. Os paraenses se aceitam e se negam nas suas ambições territoriais. Uma nova delimitação administrativa para essas territorialidades poderia consolidar projetos regionais mais adequados às expectativas de seus habitantes.
No dia 11 de dezembro, próximo, teremos a primeira consulta democrática sobre a divisão territorial de um Estado brasileiro. Independente do resultado, o plebiscito possibilitou a visibilidade e a oficialização do desejo de emancipação e, por sua vez, aprofunda o sentimento emancipacionista. A continuidade dessa relação por meio de uma união forçada poderá se complicar. A divisão territorial do Pará parece irreversível ao longo do tempo.
Santarena, é graduada em Comunicação Social, mestre em Planejamento de Desenvolvimento e doutora em Ciências Socioambientais do Trópico Úmido, professora da UFOPA – Universidade Federal do Oeste do Pará.
Fonte: Blog do Jeso
Uma grande contribuição academica para nós.
ResponderExcluirA causa é justa e legitima. Alem disto com o Estado do Tapajos teremos futuramente a possibilidade de termos instalada uma esquadra da marinha guerra para defesa de nosso patrimonio, soberania nacional, conforme sinalizam os estudos apresentados pelo representante do Ministerio da Defesa na comissão do senado, recentemente.
Nosso Estado do Tapajos é fronteira,hoje meio desprotegida na forma que vive o Para.