As unidades escolares
da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de Goiânia receberam no
começo deste semestre letivo os livros recomendados pelo Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC). Os professores de cada
disciplina escolhem entre livros de visão parecida, uma coleção que lhes sirva
de apoio durante as aulas nos próximos anos. Esta escolha, no entanto, tem sido
dolorosa para boa parte dos professores que se sentem inconformados com a linha
de doutrinamento político e ideológico das editoras participantes deste Programa.
Elas reproduzem, em seus livros, a compreensão governamental sobre sociedade e educação
que é de acordo com seus preferidos intérpretes do marxismo e do relativismo
filosófico. Pelo visto, o Governo tem a escola como espaço privilegiado para empreender
o seu processo de subjetivação coletiva, que visa construir uma sociedade
socialista, secularizada e relativista.
Há em alguns destes
livros didáticos uma pretensa vontade de direcionar a formação política do
aluno quando textos e imagens divulgam programas sociais do Governo Federal;
exaltam conhecidas figuras políticas do socialismo brasileiro e estrangeiro; relê
períodos econômicos e históricos da nação; sublima nomes importantes do Governo;
ironiza partido político oposicionista e conhecidos membros da oposição.
Considerando que o próximo ano é eleitoral, pode-se entender que a promoção de
personalidades do Governo, da sua base política e do modelo socialista e
sustentável de governar, mesmo que implicitamente, tenha a intenção de formar opinião
política, partidária e ideológica na escola.
A compreensão da ética,
da moral e dos costumes em conformidade com o relativismo do secularismo contemporâneo
e a interpretação marxista do laicismo, são valorizadas nesses livros didáticos.
Essas influências, inclusive, mudam o sentido de laico que prevaleceu até o
início do século passado nas democracias americana e inglesa, que estão entre
os modelos inspiradores da Constituição brasileira de 1988. O poder de hoje incentiva
a ressignificação destes termos para adequá-los à sua ideologia. Chega-se, assim,
a um relativismo caolho porque ofusca e também apaga valores fundamentais do
cristianismo que insistem em permanecer na sociedade. Em anos anteriores, estes
valores foram diminuídos nos livros didáticos, mas nos livros do próximo ano, estes
sinais estarão ainda mais diluídos. Ao valorizar o esotérico e o místico,
vestidos de maneiras alternativas de espiritualidade e cultura, permite
abstrair que as obras escolares transitam num delicado terreno de compensação
e/ou substituição simbólico-ideológica.
É natural as famílias
confiarem na isonomia da escola pública para respeitar os fundamentos que as
sustentam, mas é bom que elas se preparem para a possível quebra desta
confiança com a chegada, em suas casas, de livros apresentando-lhes uma nova
configuração de família. As famílias também precisarão aprender lidar com a
censura e o enfrentamento dos filhos doutrinados pela escola em discursos diferentes
dos seus, relacionados ao corpo, ao comportamento e à prática social. Os
livros, por exemplo, trocam o visual comportado de pessoas que aparecem em
imagens ilustrativas, pelo estilo diferente das tribos urbanas ou sociedades
alternativas. E é esta imagem de corpo que os autores buscam popularizar e normalizar
a partir de algumas capas de livro, introdução de capítulos e interior dos textos,
mesmo sabendo que esta imagem de corpo não predomina entre os jovens da
periferia conservadora de Goiânia.
Um aspecto relevante
encontrado em alguns destes livros, é o esforço deliberado de desconstrução do
modelo tradicional de família nuclear: pai, mãe e filhos. Em um livro de
espanhol para o 6º ano, cujos alunos de 12 anos de idade estão em formação da
personalidade, no capítulo que fala sobre a família, logo na página de
apresentação há o modelo do interfone de um prédio de quatro andares composto
de dois apartamentos por andar. Ao lado do número do apartamento lê-se a
descrição do tipo de família que ali habita. No apartamento 101, moram “Dos
mujeres, su hija.”, cuja tradução é: “Duas mulheres, com a filha delas.” Na
base do interfone, surge a inscrição: “No hay familias modelo, simplemente,
modelos de família.” que em português é: “Não há famílias modelo, simplesmente,
modelos de família”. Na página seguinte,
quando o texto passa a discorrer sobre as características familiares, há
imagens iconizadas representando alguns tipos de família e, entre eles, o de
duas mulheres de mãos dadas, com uma delas grávida. Pelo que se conhece das
uniões homoafetivas femininas, subentende-se que uma das possibilidades para a
gravidez desta mulher seja a inseminação artificial.
No mesmo livro, na
parte que oferece subsídios didáticos e pedagógicos ao professor, há a seguinte
orientação: “Segun la Red Nacional Católica de Jóvenes por el Derecho a Decidir
(RNCJDD), estos grupos conservadores insisten em afirmar la relación monogâmica
heterosexual, desde que se unen em matrimonio hasta que mueren, como única
opción para formar famílias, ignorando otros modelos de família, por ejemplo:
la presencia femenina como cabeza de la família con hijas e hijos, y personas
del mismo sexo con hijas e hijos.” Que traduzindo para o português fica assim:
“Segundo a Rede Nacional Católica de Jovens pelo Direito de Decidir (RNCJDD),
estes grupos conservadores insistem em afirmar a relação monogâmica
heterossexual, desde que se unem em matrimônio até a morte, como única opção
para formar famílias, ignorando outros modelos de família, por exemplo: a
presença feminina como cabeça de uma família com filhas e filhos, e pessoas do
mesmo sexo com filhas e filhos.”
Sabendo que o livro é
direcionado para escolas periféricas da cidade de Goiânia, cujo público é
hegemonicamente cristão, e que muito provavelmente o educador seja resistente à
temas da obra, os autores se valem de um discurso de convencimento que se alinha
à proposta deles. O interessante é terem buscado este argumento aliado dentro
da formação discursiva católica, considerada por eles de conservadora. É sabido
que a Igreja Católica não compartilha das ideias deste seu grupo de jovens. Essa
premissa, no entanto, tem valor simbólico importante, porque mostra ao aluno a
possibilidade de se insurgir, de rebelar-se contra os valores estabelecidos
pelas Instituições, a partir do interior delas.
Em um dos livros de Língua
Inglesa para o 6º ano, no capítulo dedicado à família, há fotografias de
modelos de família, inclusive uma com dois homens, e um deles segura um bebê.
Esta foto sugere uma relação homoafetiva masculina que adota uma criança. Em
outro livro de Língua Inglesa também para o 6º ano, na mesma foto aparecem duas
mulheres com uma criança e dois homens com duas crianças. Pelo contexto, é
possível inferir que se trata de relações homoafetivas feminina e masculina,
com suas crianças adotadas. No mesmo livro, nos exercícios, há uma parte que
pergunta sobre os tipos de família para o aluno marcar e uma das respostas é
esta: “( ) Three different families:
father, mother, and son; mother, father, and three kids; two fathers and an
adopted baby.” Traduzido para o português fica assim: “( ) Três diferentes famílias: pai, mãe e
filho; mãe, pai e três crianças; dois pais e um bebê adotado.”
Um dos livros de
Língua Inglesa para o 9º ano, cujos alunos têm em média 15 anos de idade, tempo
em que as escolhas para a vida estão sendo definidas, na parte de subsídio
didático e pedagógico ao professor há a seguinte orientação para tratar dos
assuntos mudança de sexo, mudança de nome e opção pela vida homossexual: “A
relação possível com o tema Orientação Sexual, na questão da identidade, pode
ocorrer durante a aula ao apresentar, por exemplo, casos de pessoas que se
submeteram a operações de mudança de sexo e tiveram seus nomes alterados. Ao
discutir temas delicados como esse, o professor pode optar por fazê-lo a partir
de casos de pessoas famosas. (...) ao falar sobre os casos de pessoas que
mudaram de sexo em tempos atuais, ou que, mesmo sem se submeterem à operação,
optam por viver com as características do sexo oposto, incluindo a identidade,
pode-se verificar se a História traz casos parecidos com esses no passado.”
Estes temas não são
considerados disciplinas, mesmo assim estão presentes nelas porque as
atravessam. Portanto, de maneira interdisciplinar, espera-se que a escola
trabalhe ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, trabalho e consumo,
orientação sexual, e outros assuntos de interesse regional, respeitando-se as
características sócio-culturais dos estudantes. O problema acontece justamente
neste ponto. Os temas são abertos e passíveis de interpretações variadas e
podem ser direcionados para qualquer ideologia, dependendo da formação
discursiva que os explora. No presente caso, o MEC optou pelo discurso que
contraria a crença, os valores e a ideologia predominantes na população. Quanto
a Prefeitura de Goiânia, ela não considerou que a maioria das crianças
atendidas pelas suas unidades escolares vem de lares de tradição cristã, o que
é atestado pelo próprio IBGE.
Vale salientar que a
presente crítica não se vê ignorante quanto aos temas científicos, mesmo porque
não contesta verdades da Ciência e nem o conteúdo curricular das disciplinas. O
problema que levanta diz respeito à abordagem e aplicação de alguns dos temas
transversais em livros didáticos recomendados pelo MEC, para o Ensino
Fundamental da escola pública, a partir do próximo ano. Este comentário também
não diminui a importância dos temas transversais, constituídos pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN’s) por entender que eles são necessários à formação
do educando para o exercício da cidadania. Entende, inclusive, que temas como
violência contra a criança e o adolescente, o trabalho infantil, bem como a
questão das drogas, poderiam ter sido mais explorados nestas coleções. Embora tenha
levantado os pontos acima, esta crítica não se julga preconceituosa quanto ao
modo de vida das tribos urbanas e de outros grupos minoritários em comparação
com a maioria. Outrossim, é defensora ardorosa da liberdade para ações
afirmativas destes grupos, do respeito e consideração que fazem jus como
cidadãos. Coloca-se contra, porém, as ações propagadoras de costumes na escola
pública, não convencionados socialmente, julgando que é função da família e não
do Estado orientar sobre padrões de comportamento.
Lamentavelmente, o
modelo de educação pública para nossas crianças e jovens tem sido formatado com
exclusividade por iluminados técnicos do MEC, de secretarias de educação e
universidades. E quase sempre escoram no status de superioridade do discurso
acadêmico, que eles mesmos arvoram e não relativizam, como suficiente para
teorizar, prescrever e impor conteúdos que por vezes são contraditórios e
dissociados dos reais anseios da coletividade. Com arrogante autonomia, incluem
e excluem colaboradores. Neste tempo mesmo, em que importantes políticas
educacionais estão sendo implementadas no país, com influência direta no
currículo escolar, os tecnocratas silenciam a voz das maiorias, porque a
consideram conservadora, retrógrada, direitista, tradicional e reacionária. Por
outro lado, concede influência privilegiada à contribuição de minorias, para
quem é ajuda vanguardista, democrata, libertária e progressista.
Os discursos que se
sentem preteridos nas escolhas educacionais para o país, no entanto, não devem
se eximir do direito de opinar e participar para uma real democratização do
conhecimento na escola. E este momento da escolha de livros didáticos, é
importante. Sintam-se, então, conclamados a visitar uma escola municipal e a
quererem conhecer estes livros. Folheiem, reconheçam, digiram, analisem e
opinem sobre eles. Deem preferência ao exemplar do professor porque contém
orientações didáticas e pedagógicas. Embora o presente texto tenha preferido
não mencionar nomes de autores e editoras, estas informações podem ser confirmadas
pelo manuseio e exploração das obras.
Ao contrário do que diz o MEC, estas mudanças
trazem inquietação entre os professores, sim. Por mais que a Secretaria
Municipal de Educação e o MEC tenham se esforçado para oferecer-lhes cursos e
palestras nos últimos anos com a finalidade de apresentar essas novas idéias. É
de se esperar que a proporção dos educadores contrários e favoráveis às mudanças
não seja diferente do percentual encontrado na população. E, se estes livros
são capazes de chocar professores e familiares na grande cidade, não é difícil
imaginar a dimensão do impacto que suas ideologias poderão causar às famílias das
pequenas cidades e povoados do interior brasileiro, mais notadamente no sertão,
cerrado, caatinga, pampa, pantanal, ribeirinhos amazônidas, além de calungas e
indígenas.
Mas o Governo parece querer,
acreditar e contar com a modalidade de revolução que se opera pela
transformação do pensamento iniciada e fortalecida na(pela) universidade
pública. E ele também parece julgar que este é o momento de dar prosseguimento
a mesma construção ideológica em curso na escola pública, valendo-se dos
recursos humanos e de conhecimento da sua universidade. Deve ser por isso que ele
investe no aparelhamento ideológico destas duas instituições públicas para que
elas alavanquem as mudanças pretendidas na mente da sociedade. Inclusive, o
viés de abordagem dos temas transversais que aparece nos livros é uma síntese de
pesquisas, discussões, congressos, simpósios e seminários da universidade. E
muitas destas reuniões, de discussões sectárias e unilaterais. A tendência é
que a influência dos livros didáticos patrocinada pelo MEC e apoiada por
prefeituras como a de Goiânia, alcance também as escolas particulares, até
mesmo as confessionais. Isto porque o milionário mercado dos livros didáticos e
paradidáticos vive ao sabor da conveniência e segue tendências mercadológicas,
mesmo que elas movimentem a sociedade para lugares estranhos.
Orley José da Silva,
é professor e mestre
em letras e linguística (UFG)
enviado por email ao Blog GV
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