quarta-feira, 25 de abril de 2012

Desafios Éticos

Os animais não têm ética nem moral, ao menos vistos por olhos humanos. Agem por instinto, sem liberdade de escolha ou discernimento consciente de seus atos. Mesmo quando um cão deixa de avançar numa pessoa, é o instinto que o previne de um possível castigo, caso avance. Assim, o animal pode ser domesticado, adestrado, mas nunca dotado de ética.


Na natureza, só o homem e a mulher assumem comportamento ético. É a partir dos 3 anos de idade que a pessoa começa a se dar conta de que não pode fazer o que quer nem agir instintivamente. Ela começa a perceber as relações sociais: a mãe que reclama porque a criança fez xixi no chão; o pai que ensina a comer de tudo; a babá que lhe dá banho todo dia. Esse condicionamento ético passa, aos poucos, para a esfera da razão. O menino apegado à mãe e com ciúmes do pai (complexo de Édipo) vai se convencendo de que deve deixar de lado suas fantasias de matar o pai. 

A vida social exige autolimitação de nossos impulsos, controle de nosso instinto, seleção de nossos valores e opções que sempre implicam renúncias. Não se pode escolher isto sem renunciar àquilo. Em suma, aos poucos se forja em nós o comportamento ético.

Toda atitude ética está intimamente ligada aos valores morais que predominam em nosso grupo social. São esses valores que inspiram nossas ações e servem de referência para avaliar se elas são ou não eticamente aceitáveis. Na moral  de certos países árabes, o homem tem mais valor que a mulher e, portanto, esta deve estar sujeita a ele. Assim, é eticamente aceitável que o pai decida com quem a filha deve se casar e impeça que ela mostre o rosto na rua. Na moral de nossos avós, uma moça não deveria mostrar as pernas na rua nem o rapaz usar brincos ou cabelos compridos. Hoje, isso é aceitável, e passa por moralista quem recrimina tais comportamentos.

Esses exemplos mostram que a moral não é a mesma em todos os tempos, para todos os povos. Ela resulta do processo cultural de cada povo. Em outras palavras, do ponto de vista da razão, não há valores morais absolutos, objetivamente inquestionáveis para toda a humanidade. No Egito dos faraós ou no Brasil anterior a 1888, não era considerado imoral escravizar seres humanos. Ainda hoje, não é considerado imoral pela cultura dominante explorar o trabalho alheio. Em muitas sociedades, ao longo da história, aceitou-se que há seres humanos superiores (reis, nobres, brancos, sacerdotes) e inferiores (súditos, camponeses, negros, leigos).

Aos poucos, homens e mulheres tomam consciência de seus direitos. Quanto maior a consciência dos direitos humanos, mais ética e moral se torna a vida social. No entanto, se olhamos em volta percebemos que há muita falta de ética e de moral em nossa sociedade. Há, inclusive, quem se oponha às campanhas em favor dos direitos humanos. Por que isso?

Capitalismo e moral

A moral tem implicações políticas e econômicas. Na Idade Media, a Igreja condenava os juros. Hoje, se tal censura perdurasse, nenhum católico poderia ser banqueiro ou agiota. Mas, por ironia do destino, o próprio Vaticano possui o Banco do Espírito Santo...

A ética protestante sempre recomendou a seus fiéis afinco no trabalho e modéstia nos gastos, incentivando a poupança. Alguns autores acreditam que tal ética foi decisiva para enriquecer países de forte tradição protestante, como a Alemanha, a Suíça e os EUA. 

No capitalismo, a moral predominante na sociedade é ambígua e contraditória, pois o valor maior para o sistema é a acumulação do capital. Assim, na "moral" desse sistema a propriedade privada é um valor acima da existência humana. Basta conferir a reação de alguns ruralistas em relação às demandas do MST? Se um homem tem fome, diz a doutrina da Igreja, ele tem direito de fazer uso da propriedade alheia. "Maior e mais divino é o bem do povo que o bem particular", lembra São Tomás de Aquino (De Regimine Principum - Sobre o governo dos príncipes - 1, I Cap. 9). 

A lógica do capital procura atrelar a ética social a seus interesses e objetivos. Para ela, é aceitável o assassinato de crianças de rua ou de líderes sindicais que lutam por reforma agrária. Incute, inclusive, no tecido social uma dupla "moral", a privada e a pública. O mesmo presidente da empresa que paga o anúncio pornográfico na TV proíbe em casa que sua filha use fio dental na praia. O mesmo comerciante que chama a polícia para o garoto que lhe furtou uma lata de sardinhas aumenta os preços de modo exorbitante e sonega o fisco. O mesmo vigário que prega a participação dos leigos na vida eclesial fecha as portas da igreja se as coisas não correm a seu modo...

A lógica do capital destrói os valores morais e corrói a ética. Foi feita uma pesquisa nos EUA para saber em que fase da vida uma pessoa consome mais. Verificou-se que é quando ela casa. Um casamento sempre desencadeia consumo, desde as alianças à nova moradia, passando pela roupa dos convidados aos presentes. Resultado, "façamos com que as pessoas se casem várias vezes". Não é de estranhar que as novelas de TV considerem caretice a fidelidade e incentivem tanto a rotatividade conjugal.

O fim justifica os meios?

Na política burguesa, a luta pelo poder faz com que o fim justifique os meios. O seja, nega a ética. Seria lícito e politicamente vantajoso utilizar qualquer meio para obter um fim libertador? Um grupo de lavradores sem-terra poderia torturar um latifundiário para obter uma informação considerada importante para o seu movimento?

A história demonstra que o meio utilizado influi no caráter do fim a ser obtido. A tortura é uma arma do opressor e todo aquele que a utiliza se coloca do lado do opressor, ainda que com finalidades aparentemente "libertadoras". Ao torturar, o torturador se desumaniza e desumaniza sua vítima por convocá-la como testemunho de seu opróbrio.

Por isso, os verdadeiros movimentos revolucionários jamais lançaram mão da tortura. Na guerrilha de Sierra Maestra, em Cuba, torturar o inimigo era considerado crime, ainda que se tratasse de um torturador. Primeiro, porque a revolução não é um movimento vingativo. Segundo, porque tratar bem o inimigo é mostrar a ele que a guerrilha, ao contrário do exército burguês, não veio para matar, mas para gerar mais vida. O inimigo preso era trocado por combatentes presos. E quando retornava às suas fileiras, fazia propaganda favorável do movimento revolucionário ao relatar o tratamento digno que recebera.

Um revolucionário que necessita lançar mão da tortura para obter informações demonstra que se afastou do povo. O povo sabe tudo, basta ter vínculos com ele para que a informação flua. Na guerra do Vietnã, os vietcongs eram violentamente torturados pelos militares estadunidenses. Quando um soldado ou um oficial dos EUA caía em mãos dos vietcongs, era bem tratado. Os oficiais eram levados para o antigo Hilton Hotel de Hanói, a capital do Vietnã do Norte, onde ficava também o comando guerrilheiro. Durante anos, a Casa Branca quis bombardear Hanói e nunca pôde fazê-lo, porque teria que matar seus próprios oficiais no Hilton Hotel. Assim, Hanói foi preservada.

Ao terminar a guerra, os prisioneiros foram levados de Hanói para a base naval de Guam, no Pacífico. Entrevistados pela imprensa, revelaram que foram bem tratados e, durante os anos de prisão no antigo hotel, jogaram tênis, usaram a piscina e receberam revistas e jornais dos EUA. A entrevista foi suspensa, sob alegação de que haviam sofrido lavagem cerebral para não contar as torturas sofridas.... Sofriam, segundo os médicos americanos, de "Síndrome de Estocolmo", expressão utilizada para definir a admiração da vítima por seu algoz.

Moral e política

Muito se discute, ao longo dos tempos, a ligação entre moral e política. Há quem defenda que a política deve ser autônoma ou independente em relação à moral. Tal proposta é atribuída ao famoso politicólogo italiano Maquiavel (1469-1527). Daí por que se chama de maquiavélica toda atitude política que ignora os preceitos morais. De fato, foi Maquiavel quem sugeriu aos poderosos o princípio de que 'o fim justifica os meios'. Em seu famoso livro, O Príncipe, ele aconselha: "... e nas ações de todos os homens, e máxime dos príncipes, quando não há indicação à qual apelar, se olha o fim. Faça, pois, o príncipe por vencer e defender o Estado: os meios serão sempre considerados honrosos e por todos louvados".

O grande desafio da política libertadora é basear-se numa ética libertadora. Não se pode construir o homem e a mulher novos usando métodos velhos. Quando se lança mão de irregularidades, de difamações, de trambiques, para ganhar uma eleição sindical ou partidária, de fato se está perpetuando a velha sociedade opressora em nome de ideais libertários. Isso é o que o Evangelho denuncia como colocar vinho novo em odres velhos. 

Em outubro de 1990, na 2ª Plenária Nacional de Movimentos Populares, em São Bernardo do Campo (SP), um grupo de companheiros falsificou cartões de votação para tentar ganhar uma eleição. Foi derrotado. O grave, porém, era achar que a libertação poderia avançar utilizando meios que são próprios daqueles que oprimem e promovem a injustiça.

A ética enraiza-se no coração humano. Não é só uma questão de comportamento político. Ela só adquire força quando se encarna na vivência pessoal. O opressor age movido por interesses; o libertador, por princípios. Assim, jamais um militante da justiça pode aceitar desviar verbas, fraudar processos eleitorais, mentir para o povo ou fazer uso do que é coletivo para benefício pessoal. "Aquele que é fiel nas pequenas coisas - adverte Jesus - é também fiel nas grandes, e aquele que é injusto no pouco, também o é no muito" (Lucas 16, 10-12).

Tais princípios devem nos servir, hoje, para avaliar as implicações éticas das práticas políticas, sobretudo considerando que a política é o terreno das negociações, das alianças, dos acordos. E a negação dessa realidade pode, facilmente, abrir caminho ao fundamentalismo (religioso) ou ao sectarismo (ideológico), instaurando um purismo ou uma ortodoxia que tantas vidas sacrificou pelo fio da espada ou pelos pelotões de fuzilamento do socialismo. É fácil ter razão quando não se senta à mesa de negociação. Difícil é resguardar os princípios e abraçar a tolerância, tendo em vista objetivos libertadores através de meios eticamente inquestonáveis.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Luiz Fernando Veríssimo e outros, de "O Desafio Ético" (Garamond), entre outros livros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário