Dois homens denunciaram a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa que rouba ipê de dentro de áreas de preservação da floresta amazônica, no Pará. Depois da denúncia, um foi assassinado – e o outro foge pelo Brasil com a família, sem nenhuma proteção do governo. A partir do relato desses dois homens, é possível unir a Amazônia dos bárbaros à floresta dos nobre
![]()  | 
| ELIANE BRUM Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br @brumelianebrum  | 
 João Chupel Primo é o morto. Junior José Guerra é o que luta para se  manter vivo, depois de pedir e não receber proteção das autoridades.  Eles denunciaram o que pode ser uma das maiores operações criminosas de  roubo de madeira na Amazônia. Segundo testemunhas, as quadrilhas  chegaram a transportar, em um único dia, cerca de 3.500 metros cúbicos –  o equivalente a 140 caminhões carregados de toras e 3, 5 milhões de  dólares brutos no destino final. A maior parte da produção é ipê, hoje a  madeira mais valorizada pelo crime organizado pelo potencial de  exportação para o mercado internacional. Toda a operação passa por uma  única rua de terra de um projeto de assentamento do Instituto Nacional  de Reforma Agrária (Incra), controlado por madeireiros: o Areia,  localizado entre os municípios de Trairão e Itaituba, no oeste do Pará.  Pelo menos 15 assassinatos foram cometidos na região nos últimos dois  anos por conflitos pela posse da terra e controle da madeira. Este é o  começo da explicação de por que João Chupel Primo morreu – e Junior José  Guerra precisa fugir para não ter o mesmo destino.
Os dois denunciaram a operação criminosa de extração de madeira no  mosaico de unidades de conservação da região da BR-163 e da Terra do  Meio para os seguintes órgãos federais: Instituto Chico Mendes de  Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Polícia Federal e Secretaria  Geral da Presidência da República. Também fizeram denúncias ao  Ministério Público Federal e também ao Estadual, além da Polícia Civil  do Pará. Pouco aconteceu, além da execução de Chupel.
Na tarde de 20 de outubro de 2011, João Chupel Primo detalhou o esquema  em uma reunião com o procurador Cláudio Terre do Amaral, que durou 1  hora e 20 minutos, na sede do Ministério Público Federal em Altamira.  Participaram dessa reunião várias pessoas, entre elas uma representante  da Secretaria Geral da Presidência da República. Na reunião, Chupel  afirmou que decidiu procurar o Ministério Público Federal de Altamira  porque já denunciara a outros órgãos e nada havia acontecido. Nos dias 6  e 8 de setembro, por exemplo, ele e Junior haviam dado um depoimento,  em Itaituba, à Polícia Federal e ao ICMBio, autarquia do governo federal  responsável por fiscalizar e proteger as unidades de  conservação. Depois de fazer mais uma vez a mesma denúncia, Chupel  afirmou: “Daqui, eu só tenho um caminho”. Fez uma pausa antes de  continuar: “Pro céu”.
Menos de dois dias depois, em 22 de outubro, João Chupel Primo foi  executado com um tiro na cabeça, dentro de sua oficina mecânica, em  Itaituba, à beira da Transamazônica. Junior trancou-se com a mulher e os  dois filhos, de 12 e 14 anos, dentro da sua casa, no município de  Trairão, nas proximidades da BR-163, e postou-se com uma espingarda na  mão. Às 6h da manhã seguinte, uma viatura da Polícia Rodoviária Federal  finalmente alcançou a porta de sua casa. Ao ouvir as portas do carro  batendo, Junior empunhou a espingarda. Sua mulher chorava: “Você acha  que vai conseguir nos defender com uma espingarda? Você nunca deveria  ter denunciado”. Ao perceber que quem estava ali era a PRF, Junior jogou  a espingarda embaixo da cama. Ele e a família foram levados a Santarém  e, de lá, Junior foi a Brasília, para, mais uma vez, fazer as mesmas  denúncias.
Ao voltar da capital federal, Junior viajou a Itaituba para recolher  provas e documentos na casa de João Chupel Primo. Lá, foi perseguido por  um pistoleiro conhecido como “Catarino”. Conseguiu escapar. Mesmo  assim, Junior não foi aceito no Programa de Proteção aos Defensores de  Direitos Humanos. Neste programa, pessoas ameaçadas de morte vivem sob  escolta, mas continuam atuando em suas comunidades. Para Junior foi  oferecido ingressar no Provita – um programa em que testemunhas com  risco de morte trocam de identidade, rompem todos os laços e passam a  viver em outra região do país, sem contato com a vida anterior. Junior  recusou. “Eu quero proteção para voltar lá no Areia e ajudar a criar uma  estrutura em que a comunidade tenha condições de trabalhar na  legalidade e viver em paz”, afirma. “Por que eu tenho de me esconder e  perder tudo o que eu construí na minha vida, e os bandidos continuam lá?  O governo quer me esconder para continuar não fazendo nada.”
É difícil compreender por que Junior José Guerra foi entregue à própria  sorte. Se não fosse por razões humanitárias, pelo menos deveria contar o  serviço que prestou ao Brasil. Segundo Ubiratan Cazetta,  procurador-chefe do Ministério Público do Pará: “As denúncias são as  mais detalhadas e concretas já feitas sobre aquela região”. Segundo  Rômulo Mello, presidente do ICMBio: “Essa foi uma denúncia qualificada,  que nos permitiu chegar a dados importantes”. A partir das informações  de Chupel e Junior, o ICMBio fez duas operações na região. Na segunda,  apreendeu 5 mil metros cúbicos de madeira – 90% deles ipê – e seis  tratores, além de aplicar multas no total de R$ 6,4 milhões. Segundo  André Villas-Bôas, secretário-executivo do Instituto Socioambiental,  organização não governamental com maior atuação na Terra do Meio: “O ISA  trabalha diretamente com a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio e  acompanha a agonia dos moradores em ver os recursos naturais serem  saqueados, ano após ano, sem ter informações que explicitem esses  esquemas. As denúncias permitiram que isso acontecesse. Junior Guerra  apresentou informações muito qualificadas e seria absurdo não proteger  essa testemunha, sujeitando-a ao assassinato”.
![]()  | 
| Júnior José Guerra: marcado para morrer, ele foge com a família pelo Brasil (Foto: Arquivo pessoal) | 
Dias antes do Natal, fui procurada por Junior José Guerra por meio de  uma pessoa em comum. Ele pegaria o primeiro dos muitos ônibus de uma  nova rota de fuga quando conversamos pela primeira vez. Ponderei que  seria perigoso ele expor sua identidade em uma reportagem. Junior  manteve-se irredutível. “Quem quer me matar conhece muito bem a minha  cara e tem fotos minhas. Já fiz denúncias em todos os lugares e, mesmo  assim, ninguém está preso. Minha única chance de permanecer vivo é  fazendo com que o Brasil conheça a minha história”.
Antes de empreender uma viagem da qual não sabia se desembarcaria vivo,  Junior me repassou os documentos que entregara a órgãos do governo e ao  Ministério Público Federal, gravações feitas por João Chupel Primo e  também suas fotos para publicar na reportagem. Tudo o que está dito aqui  é de conhecimento das autoridades, há meses, desde o tempo em que  Chupel ainda respirava. Neste exato momento, o que está em jogo é a vida  de Junior José Guerra. E o que está em suspenso é a capacidade do  governo de proteger a floresta e os brasileiros que vivem nela. 
O começo da história
A trajetória de João Chupel Primo, 55 anos, e de Junior José Guerra,  38, evoca duas perguntas intrigantes. Como o ipê é tirado, em grande  volume, de dentro de unidades de conservação protegidas por decreto  federal? Como Chupel e Junior denunciam uma operação criminosa a  autoridades de diversas instâncias, e, mesmo assim, um é assassinado e o  outro é obrigado a fugir?
No início de 2004, a situação no oeste do Pará era crítica. Grileiros  dominavam a região pela força, ameaçando a sobrevivência da floresta e  dos povos da floresta. Naquele momento, o interesse era botar a mata  abaixo e transformá-la em pasto para boi como forma de garantir a posse  da terra. Na área conhecida como Riozinho do Anfrísio, cerca de 200  pessoas, descendentes de soldados da borracha abandonados na selva  depois que o preço do látex desandou, defendiam a floresta e o seu  direito de permanecer nela à custa da própria vida. Viviam da extração  da castanha, do óleo da copaíba e da pesca – e à margem do Estado, que  ignorava sua existência. Para expulsá-los, pistoleiros começaram a  incendiar suas casas e a ameaçá-los de morte. A resistência da população  extrativista levou a então ministra do Meio Ambiente Marina Silva a  intervir. E em 8 de novembro de 2004, o governo Lula criou a Reserva  Extrativista Riozinho do Anfrísio. Essa história foi contada em duas  reportagens: “O Povo do Meio” e “Nasce o País dos Raimundos”.

A partir de 2004, o governo federal criou um mosaico de unidades de  conservação na Terra do Meio. Parecia uma grande vitória da sociedade  contra o crime. Teria sido, se o Estado tivesse continuado a fazer a sua  parte. Antes da criação da reserva, o líder extrativista Raimundo  Belmiro estava jurado de morte. Hoje, voltou a estar jurado de morte,  como foi denunciado nesta coluna, em “Cabeça a prêmio: R$ 80 mil”. Desde então, Raimundo vive sob escolta da guarda nacional.
Por quê?
A resposta pode ser encontrada nas denúncias de João Chupel Primo e  Junior José Guerra. O conjunto de áreas de preservação foi criado, mas a  ocupação pelo Estado ainda está muito aquém do necessário. Em vez de  abandonar a região, os grileiros apenas mudaram de atividade. Em lugar  de abater a floresta para fazer pasto, passaram a extrair árvores nobres  de dentro das áreas de proteção. Saiu a pecuária, entrou a madeira. Na  prática, como o governo federal, seja pelo motivo que for, não fiscaliza  como deveria, a mudança do modelo de negócio tornou o crime mais  eficaz.
Há lógica na mudança de atividade. O gado exige uma estrutura maior e  mais permanente do que a madeira. Os bois têm marcas, as toras não. A  floresta abatida aparece facilmente nas medições de desmatamento. A  extração de madeiras escolhidas, como o ipê, exige trabalho de campo e  tecnologias elaboradas para que se possa enxergar. A grosso modo, é a  diferença entre implodir um edifício – algo que todo mundo vê – ou  apenas saqueá-lo por dentro. Você olha por fora e acha que está tudo bem  com ele. Mas, se entrar, percebe que é uma carcaça.
Na prática, os grileiros continuaram agindo como se fossem os legítimos  donos da terra, com territórios delimitados e assegurados pela força. A  estrutura das quadrilhas é semelhante: em geral, há um “dono da terra”,  que recebe entre 25% e 30% para permitir a retirada da madeira de sua  “propriedade”. É dele a obrigação de garantir a segurança, eliminando as  resistências de ribeirinhos, indígenas e assentados para que o  “trabalho” se desenvolva sem percalços. Para isso, o “dono da terra”  mantém uma espécie de milícia e um comandante. Quem paga a comissão para  o “dono da terra” e se responsabiliza pela extração da madeira é o  “extrator” – ou “gato”. Para isso, ele comanda várias equipes de pessoas  para o abate da madeira. Quem se opõe à operação e a denuncia, como o  líder extrativista Raimundo Belmiro, passa a ser jurado de morte. Se nem  assim a pessoa se cala, só há dois caminhos: ou será protegido pela  guarda nacional, como Raimundo; ou passa de marcado para morrer a morto,  como Chupel.
Junior José Guerra está numa espécie de limbo. Por um lado, botou todos  os documentos e gravações nas mãos das autoridades, mas isso não lhe  garantiu a proteção do Estado. Agora, ele não tem nenhum trunfo para  trocar pela vida. E está sendo caçado.
A trajetória de João Chupel Primo – o morto
![]()  | 
Conhecido na região de Itaituba como “João da Gaita”, João Chupel Primo  era um gaúcho que migrou por vários estados até chegar à Amazônia e ao  Pará. Nas festas, sempre dava um jeito de arrancar algumas músicas  gauchescas da sua gaita. Até transformar-se em denunciante, costumava  ser visto com desconfiança pelas lideranças que combatiam a grilagem.  Dono de uma oficina mecânica em Itaituba, Chupel havia “comprado” uma  área de terra no Riozinho do Anfrísio. Para fazer o negócio, fez  sociedade com um grupo de pessoas da cidade de Sorriso, no Mato Grosso. O  chamado Grupo Sorriso é um dos quatro que loteiam as unidades de  conservação, traçando um mapa próprio de registro de imóveis em área  pública.
Duas fortes razões – e como ele está morto não é possível saber qual  delas pesou mais – levaram Chupel a denunciar um esquema do qual chegou a  participar:
1) Em 2011, começou a rarear o ipê no território do grupo de Carlos  Augusto da Silva, o Augustinho, que chegou a ser preso pela morte de  Chupel, durante a operação do ICMBio e PF, e foi libertado logo depois.  Não apenas conhecido, mas temido em toda a região como o mais violento  chefe do crime organizado, Augustinho passou a invadir a área do Grupo  Sorriso para roubar madeira. Chupel foi tomar satisfações. Acabou  espancado. Mais tarde, ele apresentaria às autoridades uma caderneta com  manchas do sangue deste dia. No papel, anotações dos pontos de GPS onde  a madeira fora abatida em sua “propriedade”. Acuado, Chupel já sabia  que não poderia contar com a polícia local. Então, em agosto, procurou o  Ministério Público Estadual, em Itaituba. E, em setembro, deu um  depoimento à Polícia Federal e ao ICMBio, também em Itaituba. Em uma  gravação, que entregou às autoridades, há o seguinte diálogo:
![]()  | 
| Augustinho - A polícia tem me ajudado muito! | 
Chupel - É, se eles não viessem ontem aqui, ficava difícil... Foi bom eles terem vindo, né?
Augustinho – (...) O comandante tá junto com a gente direto!
Chupel - Pois é...
Augustinho - Eu tenho que dar um dinheiro pra eles, uns mil, dois mil real.
 2) No início de 2011, Chupel perdeu seu único filho, eletrocutado em  um torno da oficina mecânica. Em seguida, a mulher o abandonou. Segundo  amigos, Chupel concluiu, por um lado, que não tinha mais para quem  deixar seu patrimônio; por outro, começou a pensar em sua situação com  Deus. Chupel é descrito como um católico fervoroso, com “conhecimento  profundo da Bíblia”. Depois da perda do filho, passou a enxergar  estrelas nas fotos que costumava tirar do entardecer. Numa viagem de  carro, achou que uma delas o acompanhava. Acreditava ser um sinal do  filho morto. Nas gravações, ele intercala as denúncias com frases sobre  Deus. Chupel estava em busca de sentido, como acontece com tanta gente  depois de uma perda. E isso o fragilizou diante de homens como  Augustinho. Não há tempo para luto em terras de pistolagem.
É assim que João Chupel Primo começa a gravar conversas comprometedoras  e a juntar documentação. É assim que ele começa a denunciar a operação  criminosa às autoridades. E é assim que ele morre com um tiro na cabeça,  a quatro metros de onde o filho perdeu a vida.


A trajetória de Junior José Guerra – o fugitivo
Junior José Guerra comunga da história de tantos migrantes que ouviram a  promessa de um pedaço de terra na Amazônia. Nascido no interior do  Paraná, ele viveu uma vida de roça, trabalhando como empregado de  fazenda e cultivando um pequeno lote próprio. No início dos anos 2000,  teve a terceira intoxicação por agrotóxicos na lavoura de soja. O médico  alertou que ele não sobreviveria a uma quarta. Junior migrou sozinho  para a região do Trairão, na beira da BR-163. Meses depois, levou a  mulher e os três filhos. Mais tarde, comprou um lote no PA (projeto de  assentamento) Areia. E, por alguns anos, também foi extrator de madeira  da Floresta Nacional do Trairão.
Quando ele e Chupel começaram a fazer as denúncias, foram recebidos com  cautela pelas autoridades, por já terem cometido infrações. Quem vive  na Amazônia – como em qualquer lugar de conflito, onde tudo ainda está  sendo escrito – sabe que a realidade tem vários tons de cinza entre o  preto e o branco. Junior e Chupel exemplificam bem a importância de  compreender a complexidade da vida naquela geografia. Sem a presença do  Estado, parte dos assentados do PA Areia e da comunidade do Trairão  vivem à margem da lei. “Enquanto o governo não implantar um plano de  manejo florestal, tudo vai continuar igual”, afirma Junior. “As pessoas  precisam comer. E a única maneira de fazer isso lá, hoje, é derrubando  madeira. É isso que precisa mudar.”
Junior logo se confrontou com a lógica local. Descobriu que, apesar de  viver em um projeto do governo federal, seus passos eram controlados  pelos chefes do crime. Para entrar e sair do assentamento, ele pagava  “pedágio”. O sentimento de posse dos grileiros era tão grande, que  chegavam ao requinte de dar recibo.

Em 2007, Junior começou a se confrontar com alguns expoentes do setor  madeireiro da região. Naquele ano, a Associação da Comunidade do PA  Areia fez uma parceria com a Amexport Indústria e Comércio de Madeiras  Ltda., madeireira instalada em Itaituba, para um plano de manejo  florestal comunitário – a única forma legal de extração de madeira  dentro de um assentamento. Segundo Junior, que participou do acordo como  um dos representantes da associação, a proposta foi apresentada por  Luiz Carlos Tremonte, da Amexport, e por Marcos Sato, da Amazônia  Florestal. O contrato foi lavrado no cartório do 2º ofício de Itaituba  em 28 de julho de 2007. Mas, em dezembro, a relação entre as partes era  crítica.
Conforme documento enviado a esta coluna pelo próprio Tremonte, Junior  teria recebido uma notificação extrajudicial pelo “recebimento de um  adiantamento de R$ 10 mil da Amexport” e “por não ter entregado a  madeira à empresa”. Junior afirma ter se recusado a assinar a intimação,  por ser “uma “armação dos madeireiros”, na tentativa de desacreditá-lo.  “Nunca recebi dinheiro nenhum”, diz. Dois dias depois, numa reunião  registrada em ata, a associação decidiu, por sugestão de Junior,  contratar um advogado para esclarecer os meandros do contrato.
Luiz Carlos Tremonte afirma que Junior é “maluco, um débil mental, que  fez uma confusão danada”. E o Chupel, depois que o filho morreu,  “começou a ver o filho na lua”. “Outras empresas também participaram,  fizeram contrato com o assentamento. A Amazônia Florestal, do Marcos  Sato, foi uma delas. Anota aí, fala com ele”, sugeriu. Marcos Sato, por  sua vez, disse que desistiu de comprar madeira da associação porque era  “muito enrolado”. Também usou a mesma expressão que Tremonte para se  referir a Junior: “um maluco”. E afirmou: “Esse camarada denunciou todo  mundo aqui. Você imagina a maluquice desse cara, ele denunciou inclusive  o Jader Barbalho, um senador!”.
No plano de manejo comunitário, a associação tinha obtido licença para  tirar 11.546 metros cúbicos de madeira de dentro do assentamento. Para  que se possa entender melhor, isso significa que a associação tinha  11.546 metros cúbicos de crédito. Quando a extração é feita, é  necessário dar baixa nesses créditos pela internet, para que a madeira  esteja legalizada e possa ser comercializada. O fato comprovado é que,  em 2008, quase todos esses créditos tinham sido usados. O problema:  segundo Junior, nenhum pé de árvore havia sido tirado de dentro do  assentamento. A análise de imagens de satélite comprova a sua afirmação.  O laboratório de geoprocessamento do Instituto Socioambiental verificou  que, um ano depois, quase não havia alteração da densidade da floresta  nos lotes previstos no plano de manejo comunitário.

Junior denunciou que os créditos foram usados para “esquentar” a  madeira retirada de dentro das unidades de conservação. E, assim,  legalizá-la, num processo conhecido como “tráfico de créditos”. Mas quem  teria feito isso? Junior acusa Tremonte e Sato. Eles negam. “Eu sou o  sonho de consumo do Ibama”, diz Tremonte. “Eu fui um grande produtor de  mogno, antes de ele ser proibido. Hoje só uso madeira branca (a menos  valorizada), que está em todo lugar.” Sato afirma: “Eu exporto madeiras  duras (as mais nobres, como jatobá e ipê), mas jamais fiz nada ilegal.  Cadê as provas? Não há nenhuma prova do que esse maluco afirma.”
Junior afirma que começou a sofrer ameaças ao reclamar da fraude. Sua  filha, então com 12 anos, apareceu em casa chorando. A família achou  que, “por já ser uma mocinha, poderiam ter mexido com ela”. Mas a menina  se recusava a dizer o que havia acontecido. Depois de algum tempo, a  menina contou a um amigo da família que Augustinho teria dito a ela que,  se o pai dela não se calasse, mataria a ele e a toda a família. Junior  então se mudou do assentamento para Trairão. Sua filha morreu algum  tempo depois. Nas porções esquecidas da Amazônia, ou se morre de tiro ou  de falta de assistência. No caso da filha de Junior, a menina estava  com dengue, e o farmacêutico, em vez de ministrar paracetamol, aplicou  uma injeção de penicilina. A menina morreu de choque anafilático.
Nos anos seguintes, a tensão só aumentou. E com ela, a violência.  Assentados descontentes começaram a ser executados. Em 2011, dois  assassinatos aumentaram a certeza de Junior de que poderia ser o  próximo. João Carlos Baú (o Cuca), dois filhos, foi morto quando dançava  em uma festa no assentamento. O primeiro tiro atravessou das costas  para o peito. Ele ainda cambaleou até cair metros adiante. Quando virou a  cabeça para enxergar quem tinha atirado, foi atingido por dois tiros na  orelha. Segundo testemunhas, o acusado é um pistoleiro conhecido por  “Paulista”, do grupo de Netão, o chefe da pistolagem de Augustinho.  Teria recebido R$ 25 mil pela morte.
Depois de Cuca, foi a vez de Edivaldo da Silva, o Divaldinho. No dia da  inauguração da energia elétrica no assentamento, bateram na porta da  sua casa por volta de três horas da madrugada. Divaldinho atendeu  enrolado em uma toalha. Quatro homens o esfaquearam dezenas de vezes. O  suspeito de ser o mandante é de novo “Netão”, ligado a Augustinho. Cada  um dos assassinos teria recebido R$ 3 mil. Divaldinho ainda ficou vivo  por muitas horas, com as tripas expostas. Primeiro, não encontravam  carro para levá-lo ao hospital de Trairão. Depois, quando conseguiram  chegar lá, não havia sangue para a transfusão. Ele morreu no hospital de  Itaituba, depois de ter a barriga costurada. Tinha seis filhos.
Junior começou a registrar boletins de ocorrência e a protocolar  denúncias. “A situação é muito parecida com o que a gente assiste nas  favelas do Rio. É um crime financiando o outro. A madeira financiando os  assassinatos. Em dois anos, foram 15 mortes”, afirma. “Quando comecei a  denunciar, Augustinho mandou me avisar que eu já podia cavar um buraco  porque ia morrer.”
Fugindo há três meses, Junior – ainda – não morreu.
Os homens da Amazônia – dos servos aos suseranos
A estrutura da grilagem lembra muito a do feudalismo. Entre o suserano e  o servo mais humilde há uma teia intrincada de relações de vassalagem.  Até hoje, poucas vezes – ou nenhuma – se alcançou os suseranos graúdos,  aqueles que fazem política na corte, com mãos macias e palavras  escolhidas. Tampouco os homens do comando, que atuam em campo. Em geral,  quem é preso nas operações do governo – quando alguém é preso – são os  servos ou vassalos de menor importância. João Chupel Primo denunciou a  estrutura e a operação de alguns feudos que ocupam a região. E foi  assassinado.
O mais violento grileiro do oeste do Pará é Augusto Carlos da Silva, o  Augustinho. Ele chegou à região nos anos 90, como empregado de Osmar  Ferreira, que ficou internacionalmente conhecido como o “Rei do Mogno”, e  ocupou um vasto território na área do Tapajós e do Xingu. Desde 2004,  essas terras federais viraram unidades de conservação, o que não o  impediu de continuar mandando nelas como se dono fosse. Augustinho já  foi acusado de ser o mandante de mais de um assassinato e chegou a  passar dois anos foragido. Agora é suspeito de ser o mandante da morte  de João Chupel Primo.
No grupo de Augustinho, as principais figuras seriam Ruberto Siqueira  da Cunha, o “Nego Ruberto”, e o “Netão”. Ruberto chefia os “gatos” que  extraem a madeira. Mantém uma central de rádio para monitorar e divulgar  as operações de fiscalização e policiamento da região. Netão seria a  outra figura estratégica da quadrilha, ao comandar a pistolagem. Ele  alcançou a região no início dos anos 2000, vindo do Paraná. Trabalha com  o filho, Alex, na liderança dos pistoleiros. É suspeito de ser o  mandante imediato dos assassinatos de Cuca e Divaldinho. Augustinho,  Ruberto e Netão não foram encontrados para dar sua versão.
Luiz Carlos Tremonte afirma que sente “grande admiração” por  Augustinho. “Um homem que ficou 20 anos dentro dessa floresta e formou  dois filhos médicos, eu tenho que admirar. Acho que, se um sujeito fosse  mesmo acusado de tanta coisa, não andaria solto como ele anda por aqui.  Por conta dessa confusão que aconteceu agora (foi preso pela morte de  Chupel e depois solto), andou dizendo até que vai embora.”
O paulistano Luiz Carlos Tremonte, dono da Amexport, tornou-se uma  figura quase antológica no Pará. Nas últimas eleições, chegou ser  candidato a governador do estado por alguns dias – e depois desistiu. Em  2005, ao depor na CPI da Biopirataria, em Brasília, criada para  investigar o tráfico de animais e plantas silvestres e o comércio de  madeira, Tremonte dificultou a vida dos deputados. Eles demoraram a  entender que ele não era mais dono nem da Amex – que estava no nome da  esposa dele. Nem tampouco da Lamex, embora ambas, segundo os deputados,  seguissem com dívidas com o Ibama. Muitas idas e vindas mais tarde, os  deputados conseguiram arrancar de Tremonte que sua empresa atual era a  Amexport. “E esta está em seu nome?”, perguntou um deputado. “Não.”
Ao depor na CPI da Biopirataria, Tremonte teve momentos “iluminados”.  Sobre sua defesa da legalidade na Amazônia: “Eu costumo dizer que a Irmã  Dorothy (Stang) morreu, mas seu ideal não”. Ao ser confrontado com a  suspeita de extração de madeira no Parque Nacional da Amazônia (primeira  unidade de conservação criada na Amazônia, em 1974): “Nem conheço.  Fiquei conhecendo ontem, no mapa!”. Ao ser questionado sobre um processo  em São Paulo, no qual respondia por estelionato: “Não, eu tinha uma  pessoa que tinha uma dívida comigo, do Rio Grande do Sul. E essa pessoa,  para me pagar a dívida, me trouxe um apartamento... — um terreno,  minto, um terreno em São Paulo. E a gente, quando tem dívida para  receber, recebe qualquer coisa: cachorro, gato, o que der. E essa pessoa  me deu um terreno em São Paulo. Eu fui ver o terreno. Me deu o  documento, a gente assinou a escritura. E eu peguei essa escritura e, de  forma legal, mandei que ela fosse lavrada num registro de imóveis. Lá  chegando, nós descobrimos que a escritura era falsa”.
Durante a entrevista a esta coluna, Luiz Carlos Tremonte insistiu:  “Puxa meu nome lá no Google, vai ver meus filminhos no YouTube. Você vai  descobrir que eu sou a pessoa que mais defende a floresta em pé. As  pessoas não compreendem, mas madeireiro é um benefício para a floresta.  Quando tira a árvore frondosa, a gente faz um bem, porque dá espaço para  uma mais jovem”. Depois, me enviou uma matéria da revista The  Economist, publicada em 2006, em que o jornalista abre com uma frase  apocalíptica de Tremonte: “Monstruous misery and hunger” (“Miséria  monstruosa e fome”) – referindo-se à situação dos madeireiros por causa  de limitações impostas pelo governo.
Outro exemplo de homem amazônico é Sílvio Torquato Junqueira, apesar  de, segundo ele, não botar os sapatos em sua fazenda, dentro da Floresta  Nacional do Trairão, desde 2006. Homem de fala mansa da região de  Ribeirão Preto, criador de gado e admirador de gatos, também já viveu em  Brasília, quando foi diretor de Operações da Companhia Nacional de  Abastecimento (Conab), nos anos 90. Tudo indica que não gostava muito  dos finais de semana na capital federal, já que teve problemas com o  Tribunal de Contas da União porque a maioria de suas viagens de trabalho  coincidia com os finais de semana e tinham como destino sua querida  Ribeirão Preto.
A Fazenda Santa Cecília é – e não é – de Sílvio Torquato Junqueira.  Essa versão quase hamletiana é muito comum na Amazônia. São milhares de  hectares em nome de mais de duas dezenas de “familiares e amigos” de  Junqueira – mas nem mesmo um único hectare em seu próprio nome. Toda a  área fica inteiramente dentro da Floresta Nacional do Trairão. Apesar de  ter se tornado uma unidade de conservação, a Fazenda Santa Cecília  continua lá, sem ser incomodada.
É complicado. O próprio Junqueira explica melhor: “Eu não sou  proprietário, eu simplesmente estava tomando conta de lotes de pessoas  que tinham se instalado por lá, em 1999, 2000. Fomos por causa da  pecuária, aí descobrimos que a madeira podia ser algo bom. Tentamos  fazer plano de manejo, mas o Ibama engavetou o projeto. Depois, disse  que precisava do título da terra. Eu fui ao Incra pedir para me dar o  título ou a certidão de posse, mas o Incra disse que não ia dar. Então  não consegui licença e ficou tudo parado. Fiquei num limbo e, de  repente, em 2006, veio o decreto do presidente declarando a área como  Floresta Nacional do Trairão. Imediatamente paramos tudo e ficou lá uma  pessoa, o seu Jordão, tomando conta destes lotes. Estamos aguardando os  acontecimentos. Como eu tinha feito lá uma casa, alojamentos, nós  recebemos as ONGs, o pessoal do Instituto Chico Mendes... Quem precisa  fazer levantamentos de flora e fauna, fica lá. Damos apoio ao pessoal do  Chico Mendes, tá certo? Tá tudo à vontade. Se forem fazer uma licitação  na Floresta Nacional do Trairão para exploração de madeira, nossa ideia  é nos associarmos a alguém para nos dar apoio, porque eu entendo de  pecuária, não de madeira. Mas hoje tem umas empresas internacionais  muito boas nessa área. Estamos lá, aguardando os acontecimentos. Se o  governo mandar sair de lá, eu saio”..  
O funcionário de Sílvio Junqueira é Jordão Ferreira da Silva Sobrinho,  mais conhecido como “Ticão”. Se o mundo da grilagem tem um diplomata,  segundo todos que o conhecem, de ongueiros a extrativistas, este homem é  o Ticão. Ele mantém excelentes relações com a quadrilha de Augustinho. E  também mantém excelentes relações com os ribeirinhos da Reserva  Extrativista Riozinho do Anfrísio, inclusive fornecendo-lhes transporte,  quando necessário. É descrito como um homem educadíssimo. Não há  conhecimento de qualquer relato de violência na Fazenda Santa Cecília.
O problema, além de a fazenda grilada estar em uma área de conservação,  é o intenso roubo de madeira em seu interior. Um madeireiro conhecido  como “Django” é apontado como o “extrator” da Fazenda Santa Cecília. Ele  venderia o ipê para a UTC Madeiras Ltda, exportadora localizada em  Itaituba. Essa madeireira ficou conhecida quando o Ibama interceptou, em  2008, no porto de Santarém, a carga de um navio com bandeira do Chipre  que levava para a Europa madeira serrada com documentação falsificada de  várias empresas. Entre elas, a UTC. Procurada para dar sua versão, a  UTC Madeiras não deu resposta.
A estrada usada para o transporte das toras corta a Fazenda Santa  Cecília e passa a poucos metros da porta da sede. "Em relação à região  da Fazenda Santa Cecília, no interior da Floresta Nacional do Trairão,  as imagens de satélite identificaram uma intrincada rede de ramais,  alguns deles verificados em campo, confirmando a existência de intensa  atividade madeireira realizada nos últimos anos dentro e ao redor da  fazenda", afirma André Villas-Bôas, secretário-executivo do Instituto  Socioambiental. A fazenda é citada no relatório “Via de Direito, Via de  Favor”, resultado de uma investigação conjunta do ISA e ICMBio.
Sílvio Junqueira declarou-se “totalmente surpreso” com a informação de  que há roubo de madeira na área grilada que administra. Afirmou: “Não  tenho conhecimento e não deve ser verdade. Tenho porteira, tenho  controle, o Jordão sempre me telefona dizendo que está tudo preservado.  Não é possível, duvido muito, deve ter algum engano nessa imagem. Se tem  alguma coisa, eu não tenho nada a ver com isso. Nem os meus filhos, nem  nenhuma das pessoas que estão lá tem qualquer coisa a ver com isso. Se  estão fazendo coisa errada lá, meu Deus do céu”.  
O fato é que a Fazenda Santa Cecília tem status especial na grilagem da  região. É a “citricultura” humana mais chique entre as bacias do Xingu e  Tapajós – devido ao pedigree de seus “laranjas”. A maioria, senão  todos, do estado de São Paulo, com ampla circulação em colunas sociais.  Marcos de Oliveira Germano, por exemplo, é campeão pré-sênior scratch de  golfe, do Ipê Golf Club, de Ribeirão Preto – nome que não deixa de ser  irônico. “Desde que mataram a Dorothy Stang, eu não tenho mais nada a  ver com isso”, diz. “A ideia era fazer uma posse. Desde Pedro Álvares  Cabral, você demarcava, fazia uma casinha, plantava uma roça e cumpria  as normas do Incra para regulamentar. Mas decretaram floresta e não fui  mais lá.” No Incra, o processo em que Germano reivindica a posse da  terra continua em tramitação.
Outra que chama atenção como laranja é Anna Cecília Junqueira. Filha de  Sílvio Junqueira, ela é atriz e organizadora de uma festa “hypada” de  São Paulo chamada “Gambiarra”. “Meu pai formou esse condomínio há um  tempo e deu pra gente (ela e dois irmãos) de presente”, conta. “Ele  disse que iria colocar em nosso nome para o caso de um dia falecer,  porque seria nosso de qualquer jeito. Mas tá tudo certinho, dentro da  lei.”
No laranjal dos Junqueira há gente com MBA pela London Business School,  aficionados de Billie Holiday, Norah Jones e Melody Gardot. Há quem  toque bateria e pratique windsurf. Outros fazem equitação. Parece  difícil unir a fina flor da elite paulista com a fina flor da  pistolagem, representada por Augustinho, Netão e Nego Ruberto. Gente que  chama grilagem de “condomínio” e gente que semeia cadáveres no meio da  rua. É quase irresistível imaginar um encontro. Mas, de fato, se  encontram. E é só ligando os pontos que é possível compreender a  Amazônia – e o Brasil.
E quem deu o estopim para unir os pontos foi um homem que está morto – e outro que foge.
E agora, Junior?
Nos primeiros dias de fuga, Junior paralisou. “Eu tinha de pensar para  botar o pé no chão e me obrigar a andar”, conta. “Era muito estranho.”  Depois, a revolta suplantou o medo. Na véspera de Natal, ele empreendeu  uma nova rota dentro do Brasil. Passou o 25 de Dezembro sacolejando em  um ônibus de linha, com sua pasta de documentos na mão – seu patrimônio e  sua maldição. Alguns dias depois, a família o alcançou no esconderijo.  Na sua casa, em Trairão, a gata de estimação partiu, as galinhas  morreram, a plantação se perdeu. Longe, em algum lugar, a mulher se  revolta, os filhos brigam, ninguém sabe o que fazer agora que a escola  vai começar. Junior José Guerra está encurralado. Se voltar, morre. Ele  denunciou – e está sozinho.
*colaborou Anna Carolina Lementy
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)




Gilson essa matéria é bombastica e tá correndo o mundo, teve destaque até na reunião da comissão de direitos humanos da UNICEF, e pelo que se observa da pressão dada no gover Dilma referente esse assunto, deve vir chumbo grosso por ai, muita gente " boa " que está envolvido até os cabelos, devem ficar sem sono por algum tempo e quem sabe até dormir atras das grades, é aguardar pra vê.
ResponderExcluir