O reinício das obras na BR-163, a estrada que corta Mato Grosso e o Pará, revela como o desenvolvimento pode ser também a raiz de problemas ambientais graves na Amazônia. Durante 20 dias, os repórteres Júlio Mosquera e Laércio Domingues percorreram a rodovia e é esta viagem que o Jornal Nacional exibe a partir desta segunda, numa série especial de reportagens.
Kitakriti fica muda diante da foto. É ela quem pede comida, na BR-163, que começava a ser aberta no meio da floresta, como nos conta Perankô, o tradutor da tribo. “Nós pegamos biscoito, farinha de fubá, melancia, açúcar”.
Kitakriti pagou um preço alto, mas se orgulha de uma vitória: o filho Soti-i é um dos poucos sobreviventes daquela época. “Foi uma luta dura”, diz ele.
O registro foi feito há 36 anos, quando os panará tiveram o primeiro contato com o homem branco. A construção da BR-163 estava em ritmo acelerado. Dois anos antes, as obras haviam sido iniciadas em Cuiabá, Mato Grosso, e tinham como destino Santarém, no Pará.
O Exército chegava a abrir por dia dois quilômetros de estrada no meio da floresta. O acampamento móvel era montado sobre chassis de caminhões. “Integrar para não entregar a Amazônia. Quer dizer, a preocupação era justamente a integração”, declarou o coronel José Meirelles, ex-comandante do 9º BEC.
O regime militar temia a guerrilha que se opunha à ditadura no país e a suposta cobiça internacional despertada pela Amazônia. No meio do caminho e dos planos do governo, estavam as terras dos panará. “Quando nós sobrevoávamos a área, eles atiravam flechas nos aviões”, lembrou José Meirelles.
Para se aproximar dos índios, o Exército contou com o apoio de dois profundos conhecedores da cultura indígena: dos irmãos Villas-Boas, que evitaram confrontos entre brancos e panará. Mas em dois anos de contato, apenas 82 dos 500 panará sobreviveram, como lembra Akan, com o ajuda de Perankô. “Aí começou febre, deu sarampo muito grande naquela época, acabou todo mundo”.
Hoje, os Panará já não estão mais sob a ameaça de extinção. Na aldeia, vivem 420 índios, dezenas deles crianças, uma nova geração para levar adiante o legado da tribo.
As mulheres preparam a farinha de mandioca. A corrida das toras voltou à rotina dos homens. O comandante do batalhão do Exército que abriu a BR-163 lamenta o sofrimento dos panará, mas defende a rodovia de terra inaugurada em 1976. “A gente sente orgulho, alegria de ter participado de uma obra tão importante, que teve um reflexo muito grande para o país. Era uma estrada larga, estrada de primeira classe, uma viagem tranquila”, contou coronel Hélio Mathias, ex-comandante do 9º BEC.
Trinta e dois anos depois da inauguração fizemos essa viagem. Partimos de Cuiabá e levamos 20 dias para percorrer os 1.767 quilômetros até Santarém. Em três décadas, o asfalto não cobriu nem metade da rodovia. A maior parte está em Mato Grosso. De saída, o flagrante de um capotamento. Encontramos o motorista ainda tonto. “Aconteceu que o cara me fechou e eu caí aí dentro. O rapaz que está fazendo a cerca viu”.
Na BR-163, falta acostamento, sinalização. Em alguns trechos, a pista é muito ondulada e há buracos. Cruzes lembram os mortos em acidentes e são símbolos de protesto. A rodovia fica 24 horas do dia ao alcance dos olhos do dono de um hotel. “Eu a considero como o corredor da morte. É muito comum acidente aqui”.
O córrego marca a divisa entre os estados de Mato Grosso e Pará. Daqui para frente, são quase 900 quilômetros de uma estrada de terra muito ruim, e o que é pior: hospital, a gente só vai encontrar a 760 quilômetros, em Itaituba.
Para enfrentar a estrada até Santarém, a suspensão dos ônibus é elevada. Motorista há dez anos no trecho, Genivaldo Ribeiro diz que, se chover, não dá para seguir. “É dormir na estrada, sem condições de nada, com sede, com fome, junto com os passageiros”.
“Já tem que vir preparada com roupa, com comida, com tudo”, conta uma passageira. Na região conhecida como Cintura Fina, o terreno arenoso faz da rodovia uma espuma derrapante. Carro não passa. Um erro e os motoristas de ônibus e caminhões só param nas imensas valas.
Caminhões atolados patinam, patinam e não sobem. Tem que esperar a estrada secar. “Não dá para contar quantas vezes eu já atolei nesta pista”, disse um motorista.
“Se São Pedro não mandar o sol, nos dormimos aqui mesmo”, completou outro.
Trinta quilômetros por hora é a velocidade média da BR entre Moraes Almeida e Aruri Grande. A estrada é muito ondulada, sacoleja tanto dentro do carro, que a sensação que a gente tem é de que está em cima de um touro mecânico.
Há 25 anos, Chico do Trator tem um restaurante num dos piores trechos da BR. Ele reboca quem atola, mas não conseguiu salvar a filha recém-nascida. “Com 43 dias, a menina morreu de pneumonia. E a gente sofreu muito aí. Não teve como sair daqui para dar socorro”.
Só fomos encontrar asfalto da BR-163 a cem quilômetros do porto de Santarém, um importante acesso de navio à Europa e aos Estados Unidos.
Agora, o governo promete recuperar toda a BR até 2011 para baratear a exportação de grãos de Mato Grosso e dar dignidade às famílias que vivem no Pará e terá pela frente o desafio de asfaltar a rodovia preservando o que resta da Amazônia.
Jornal Nacional
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