Na XI Assembleia Munduruku na aldeia Dace Watpu, em
Itaituba, cerca de 400 lideranças das aldeias no alto e no médio curso do rio
reafirmam a disposição de resistir às hidrelétricas
Na aldeia munduruku Dace Watpu, na margem do rio Tapajós, próximo do município
de Itaituba, no Pará, caciques, guerreiros, moças e crianças se enfileiraram,
no último dia 24 de setembro, para esperar a chegada dos convidados,
pesquisadores, apoiadores não-índios (pariwat, na língua munduruku) e o
procurador da República no Pará Felício Pontes Jr. Cantando, conduziram os
convidados ao local das reuniões da XI Assembleia Munduruku do Médio Tapajós.
Já reunidos no barracão central da aldeia, as vozes se calaram para ouvir um
menino de não mais do que sete anos, que cantou para todos mostrando que a
língua e a cultura munduruku seguem vivos nas novas gerações (assista ao vídeo
em https://youtu.be/Wsi0dPPLEDM).
Os índios Munduruku formam uma das maiores e mais guerreiras nações indígenas
brasileiras e resistem desde o século XVIII às ameaças da colonização. No
século XXI, se encontram numa encruzilhada diante de um conjunto de projetos de
barragens que o governo brasileiro implanta na bacia do Tapajós, rio que
segundo os mitos formadores desse povo lhes foi destinado para viver e proteger
pelo criador Karosakaybu. No total, são 48 barragens previstas para o rio e
seus formadores, Jamanxim, Teles Pires e Juruena, algumas já em construção.
Ao longo da assembleia, 32 pessoas se manifestaram, entre caciques, lideranças
e representantes das várias aldeias presentes, a maioria falando em língua
indígena. O tradutor Munduruku, Antonio Dace, resumiu os discursos para o
procurador Felício Pontes Jr, ao final dos debates, quando a noite já ia
avançada. “O senhor presenciou uma criança cantando. Aquilo nos emocionou
muito. Ele foi ensinado pelos pais, que estão na luta para defender o futuro
dele. Aquela criança simboliza algo muito importante para nós, a nossa luta e o
nosso futuro”, disse Antônio.
“O Diálogo Tapajós (nome fantasia do consórcio de empresas que quer construir
as usinas) está trabalhando para iludir algumas lideranças. Nós queremos que o
governo respeite o nosso protocolo. Foi falado aqui várias vezes que a terra é
nossa mãe e nos alimenta. Foi falado também sobre os nosso vasos funerários
sagrados, retirados do Teles Pires. Nós não queremos indenização por eles. A
gente não vende o que é nosso. Foi falado sobre o Relatório Circunstanciado de
Identificação e Delimitação da nossa terra Sawré Muybu, que a Funai se recusa a
publicar. As mulheres relataram o medo que sentem quando os maridos viajam para
longe para negociar com o governo. Porque nós sabemos o genocídio que está
acontecendo com nossos parentes Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Quando os
maridos voltam, é um alívio. Nós só queremos que o governo nos deixe em paz
para viver e para ver nossas crianças crescerem”, enumerou, traduzindo a
maioria das questões mencionadas.
Os problemas enumerados durante a assembleia Munduruku são os resultados dos
esforços do governo brasileiro para assegurar a construção das barragens.
Diversos direitos dos índios e ribeirinhos da região estão sendo seguidamente
violados, pelo menos desde 2012. O Ministério Público Federal (MPF) já ajuizou
19 ações judiciais tratando dessas violações. No caso dos Munduruku, além de
até agora não ter cumprido a consulta prévia, livre e informada prevista na
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o governo
paralisou a demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, que será alagada se a
usina São Luiz do Tapajós for construída, obrigando os índios a saírem de sua
terra, o que é vedado pela Constituição brasileira.
Com a demarcação paralisada e o anúncio de vários empreendimentos hidrelétricos
na região, grupos de madeireiros, palmiteiros e garimpeiros ilegais circulam
pela região, disputando recursos naturais e ameaçando fisicamente os índios em
várias ocasiões. O MPF obteve em abril de 2015 uma sentença judicial ordenando
que a demarcação prosseguisse.
Mas o governo, através da Funai, lançou mão de um instrumento jurídico da
ditadura que vem garantindo a construção de usinas hidrelétricas em toda a
região amazônica: a suspensão de segurança. Na suspensão, o presidente do
Tribunal Regional Federal da 1a Região, desembargador Cândido Ribeiro, alegou
razões de economia pública para ordenar a paralisação da demarcação. Esse tipo
de decisão, apesar de nem mencionar o mérito do processo – que trata do direito
constitucional dos índios ao território – tem efeito permanente até o trânsito
em julgado (último julgamento, que pode demorar muito). Com isso, mesmo com o
relatório de delimitação da terra indígena pronto desde 2013, o procedimento
voltou novamente à estaca zero e não há previsão de prosseguimento.
Em resposta à negativa da Funai, os Munduruku se lançaram na empreitada de
autodemarcar seu território, liderados pelo cacique Juarez Saw Munduruku, uma
das lideranças que vêm recebendo ameaças na região. “A gente não tá emprestando
essa terra. Nós somos brasileiros verdadeiros e donos da nossa terra. Não
estamos pedindo que o governo demarque, essa terra não é deles para dar, é
nossa. Essa terra aqui, esse rio aqui, o Karosakaybu deixou pra nós. E eu não
posso mais andar na minha terra porque sou ameaçado por madeireiros e
palmiteiros. O governo não olha mais para o indígena, só quer acabar com o
indígena, acabar com a floresta, acabar com o rio”, disse o cacique durante a
assembleia.
Tanto quanto o governo brasileiro, o Diálogo Tapajós, nome adotado pelo
consórcio de empresas que quer construir as usinas (Eletrobras, Eletronorte,
GDF SUEZ, EDF, Neoenergia, Camargo Corrêa, Endesa Brasil, Cemig e Copel) é
acusado constantemente de violações pelos moradores da região. Nas mais
recentes incursões no território, as empresas vêm repetindo o discurso
conhecido na Amazônia inteira de que a chegada das usinas vai assegurar saúde e
educação de qualidade. “O governo diz que quando tiver hidrelétrica vai ter
saúde, vai ter escola. O governo não pode vir aqui tentar nos vender nossos
direitos, isso é um crime”, disse a Maria Leuza Kaba Munduruku.
Adauto Akai Munduruku também denunciou ao MPF o comportamento do Diálogo
Tapajós. “Tudo que tá acontecendo no Xingu, a gente não quer que aconteça no
Tapajós. A gente sabe o sofrimento que nossos parentes passam com barragem. A
gente não quer esse sofrimento. E a gente vai lutar até a morte se o governo
insistir”. Os exemplos das usinas de Tucuruí, construída durante a ditadura
militar, e de Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Teles Pires, São Manoel e
Sinop, construídas nos governos democráticos, são lembrados constantemente,
como assombrações do que pode ser o futuro do Tapajós.
No Teles Pires, quatro barragens (São Manoel, Teles Pires, Sinop e Colíder) já
estão em estado avançado de construção e provocaram a destruição de locais
considerados sagrados pelos povos da região, como a cachoeira Sete Quedas, Pari
Bixexe em língua munduruku, o lugar para onde vão os mortos. O Consórcio
Construtor da usina Teles Pires, que provocou a destruição da cachoeira também
é acusado pelos Munduruku de retirar da floresta, através de uma empresa de
arqueologia subcontratada, urnas funerárias que pertencem aos indígenas. A
descoberta da retirada das urnas, em 2012, foi acidental: um grupo de índios
foi convidado pela empresa de arqueologia a conhecer o escritório onde
trabalhavam, em Alta Floresta, no Mato Grosso. As urnas sagradas estavam lá.
Os Munduruku denunciaram o episódio ao MPF, que investiga o caso em Itaituba.
Na assembleia da aldeia Dace Watpu, o assunto foi um dos mais mencionados.
Consta na declaração final da assembleia: “Quando falamos ao governo brasileiro
da importância do sagrado para nós, de que estes lugares e símbolos não se
permite tocar ou remover, as autoridades não entendem e parece que nunca a
compreenderão. Todas as ameaças estão acontecendo para destruir o que nos é
sagrado. E todos nós somos sabedores que é a construção de usinas hidrelétricas
na bacia do Tapajós é a entrada de vários outros empreendimentos dos setores
econômicos do interesse do governo como da mineração, hidrovias, construção de
portos de navio para transportar grão de soja e construção de ferrovias no
território Munduruku.”
“Para os indígenas, não se pode separar a natureza das pessoas. Agora que os
brancos estão começando a aprender isso. Eu estudei anos na universidade mas só
fui aprender isso lá na Missão Cururu (aldeia Munduruku no alto Tapajós), que
foi a primeira vez que fui a uma aldeia indígena, 20 anos atrás. Agora, esse
ensinamento que os índios sempre tentaram passar para os brancos, é o que há de
mais moderno nas universidades do mundo. Por isso vocês têm toda razão ao dizer
que não podem entregar o rio e a floresta que são de todos em troca de escola e
posto de saúde. Isso é direito dos indígenas, é obrigação do estado, não é
favor de empreiteiras. Isso vale para os índios e para os ribeirinhos, é
direito de todos. Posto de saúde não pode ser oferecido em troca de aceitar
usina hidrelétrica”, concordou o procurador Felício Pontes Jr, ao se dirigir à
assembleia, já no fim da noite de 24 de setembro de 2015.
Todas as denúncias feitas pelos Munduruku serão apuradas pelo MPF, por meio de
investigações que tramitam em Santarém e Itaituba.
Veja a declaração final da XI Assembleia Geral Munduruku
Veja as ações ajuizadas pelo MPF sobre as barragens na bacia do Tapajós:
Ministério Público Federal no Pará
Assessoria de Comunicação
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