Há consenso entre professores que
o ensino escolar deve desenvolver a capacidade crítica nos
alunos. A nova A LDB 9394/96 estabelece que a educação média
objetiva “...o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico...”(BRASIL. MEC, 1999,p. 20).
No período da ditadura militar
professores podiam ser presos se ensinassem os alunos a serem
cidadãos críticos ao regime político vigente, ao capitalismo
selvagem etc. Na década de 1980, “a História era disciplina que
se encarregava de fazer com que os alunos e professores
exercessem o papel de sujeitos ativos na construção do seu
conhecimento. Reconhecer e problematizar as experiências vividas
pelos alunos e professores são atos imprescindíveis para a
construção do conhecimento crítico”, observa Arthur Versiani
Machado, do CEFET de Ouro Preto.
Existe, porém, o problema sobre a
compreensão do que é ser crítico. Noutros termos, há muita
arbitrariedade no uso da palavra crítica, desde o julgamento
popular de uma “situação crítica” até a conceituação originada
na filosofia de: “espírito crítico”,
“pensamento crítico”, “senso crítico”, “atitude crítica”,
“postura crítica”, “postura crítica de análise”, “análise
crítica”, “capacidade crítica”, “apreensão crítica da
realidade”, “concepção crítica”, “sujeito crítico”, entre
outras.
Existe uma associação indevida
entre crítica com o ato de apontar defeitos ou de
“descer-a-lenha” no outro ou na sua obra. Criticar uma obra de
arte, uma teoria, os políticos, o governo, o técnico de futebol,
o estilo do professor, os alunos, no fundo, consiste tão somente
em apontar defeitos? Ou é imprescindível ao crítico investir
numa argumentação consistente e fala respeitosa ou polida?
John Passmore (1979) observa que
ser crítico não é simplesmente se posicionar contra, por
exemplo, disparar contra uma obra ou autor “sua” opinião pessoal
(ex.:“não gosto de Picasso”, “ópera é para aristocratas e
burgueses”, “música x é chata”), ou usar argumentos
estereotipados ou falaciosos sobre um determinado sistema de
idéias que ele discorda.
Há professores cujo estilo vulgar
de ser crítico levam os alunos reproduzirem o seu modo
estereotipado de opinar sobre as coisas sem pensar
autocriticamente. Segundo o autor acima, esse processo de
pseudo ensino crítico chama-se doutrinação. Por exemplo, diante
de uma pintura abstrata o aluno é levado a responder
automaticamente: “Isso é decadente”. Ou, ao assistir um curso
cuja linha teórica lhe desconcerta, o aluno que foi doutrinado
fica com cara de paisagem, isto é, reage com os mecanismos da
indiferença e das respostas estereotipadas para si e para os
outros.
Curiosidade:
o crítico contumaz, assim que chega ao poder (prefeito, diretor
de escola, reitor, etc), tende a deixar de ser crítico. Agora
ele faz discursos sobre suas realizações. O prefeito aproveita
qualquer oportunidade da mídia para divulgar suas obras na
cidade. O diretor da escola escreve panfletos para sua
comunidade divulgando mudanças radicais em sua gestão na escola.
O reitor se empenha em fazer bons discursos para mudanças
cosméticas da universidade. Assim, a crítica vale apenas para o
outro, jamais deve se voltar para si próprio.
O exagero dos discursos das
realizações zeradas de autocrítica leva-os a cair na vala do
ridículo. Um diretor de escola – conhecido por bater no peito
ser comunista – revela seu lado ridículo ao fazer um discurso
plagiando o estilo malufista, por exemplo, ao enumerar suas
obras e mudanças radicais na escola. Um prefeito do PP ou DEM
fica ridículo querendo se passar por “popular” ou “democrata”.
Desse modo, a experiência
demonstra que o crítico contumaz ao sistema político-econômico,
uma vez no governo, se burocrática, passa a gozar de benefícios
do poder, e também do auto-engano produzidos pelo cadáver de sua
crítica. Se fosse evocado o fantasma desse cadáver talvez lhe
dissesse: o mal são os outros que não
abdicaram de seu espírito crítico.
Criticar x Achincalhar:
as vias do direito
Forma comum de perverter o sentido de crítica é o
achincalhe. O Dicionário diz que:
achincalhar
é ridicularizar,
humilhar, chacotear, debochar, escarnecer. Há achincalhe
quando o alvo do ataque é a pessoa, não suas idéias. O
achincalhador lança mão de todos os estratagemas que foram
elencados minuciosamente por Schopenhauer em sua “Arte de ter
razão”.
Segundo
Ricardo Antônio L. Camargo,
“também se configura o achincalhe quando se imputa a alguém
fato depreciativo e inverídico ou quando se lhe diz algo
gratuitamente ofensivo à dignidade e ao decoro...Quando o fato
imputado constitui crime, estamos diante do tipo calúnia.
Quando o fato é meramente ofensivo à reputação, estamos diante
da difamação. E quando se ofende a dignidade e o decoro
de alguém, sem lhe imputar fato, o que se faz é injuriá-lo”.
Obs.: Se for configurado crime de calúnia, difamação, e injúria,
a vítima pode processar o agressor na justiça.
Portanto, crítica digna deste
nome se expressa por argumentos consistentes, fundamentados, e
não em ataques pessoais ou achincalhes. Reforçando o já dito, a
verdadeira crítica não visa à pessoa, mas o seu enunciado; há o
objetivo de contribuir para desvelar o sentido de um discurso ou
obra, bem como revelar as artimanhas e a técnica usada pelo
autor.
O achincalhe “é sempre
corrosivo, é sempre destrutivo, é sempre a base de todos os
conflitos que extrapolem motivos puramente materiais.
Estereótipos, preconceitos e mesmo ódios passam a ser
considerados como o metro pelo qual se medirá a bondade ou a
maldade das condutas ou mesmo das pessoas”, analisa Camargo.
Numa reunião, por exemplo,
alguém pode criticar uma nova medida administrativa
sustentando certos argumentos, outro, carente de argumentos ou
querendo se passar como mais “crítico” ataca o primeiro na sua
integridade pessoal ou moral, religiosa, sexual, política, ou
visa atingir sua cor de pele. O primeiro caso há crítica
verdadeira, porque confronta argumentos com (contra)argumentos.
Mas o segundo não passa de falsa crítica, tanto porque
falta-lhe argumentos verdadeiros, e, sobretudo, porque o suposto
crítico “joga pra galera”, faz política baixa ou politicagem
com um discurso vazio visando agradar um determinado grupo.
Atacar o oponente com golpes
baixos (retórica com falácias, gestos teatrais, lágrimas de
crocodilo, se colocar como vítima), não visa a verdade, mas sim,
tem a intenção de destruir a pessoa ou idéia. Portanto, é
achincalhe quando o suposto crítico “joga pra galera” frases de
efeito como: “ele é de direita”, “você é comunista”, “fulano é
neoliberal”. Geralmente tais frases vêm acompanhadas do estilo
debochado, visando despertar risinhos amarelos no grupo caído na
rede dos objetos falseados do achincalhador.
Critica e falsa crítica no
ambiente de ensino
Um palestrante pode tanto
criticar a obra como achincalhar sua pessoa, ou usar de deboches
e sarcasmos visando destruir sua obra ou sua imagem pessoal
perante a audiência. Cabe aos ouvintes ficarem de prontidão
genuinamente crítica tanto para resistir ser doutrinado como
para denunciar as falácias e promover a “dialética do
esclarecimento” junto ao público.
Na escola, está se tornando
freqüente alunos e pais desrespeitarem a professora.
Confrontados, eles argumentam que estão apenas criticando
o seu trabalho. Ora, se há desrespeito, estão achincalhando-a. O
desrespeito não faz parte da verdadeira crítica. Eles poderiam
criticar – com polidez e usando argumentos –, sem ofender ou
desrespeitar. A professora tem o direito de se defender, também
com polidez, usando argumentos e observaando o regulamento da
escola.
O estilo crítico-cricri
adotado por alguns alunos supostamente politizados e ansiosos em
questionar-por-questionar também podem trair o propósito de
verdadeiramente criticar. O aluno cri-cri imagina que basta
discordar, ou ser do contra, ou estigmatizar o professor disso
ou daquilo em vez de apresentar os fundamentos de sua suposta
crítica.
Alguns professores acham chato
esse tipo de aluno crítico-cricri, porque atrapalha a aula com
falas estereotipadas e recortes de um discurso ideológico
geralmente fora do contexto da discussão. Tais alunos costumam
seguir uma idéia-guia ou teoria totalizante que para eles
“explica tudo” e sabe como “resolver todos os problemas do
mundo”. Provavelmente o estilo cri-cri se rendeu aos encantos de
um mestre panfletário e se vê convicto de ter encontrado “a
verdade toda”. De acordo com os quatro discursos propostos por
Lacan, estamos tratando, aqui, do “discurso universitário”, que
se autoriza a partir de textos e autores venerados para impor
seu saber a outro (o aluno-estudante) e visa produzir nele um
contestador com ou sem causa.
O aluno cri-cri incomoda, sem
dúvida, mas, pior mesmo é o aluno que passou dessa condição para
ser um fanático mudo, onde o juízo crítico lhe foi abolido.
Nele, a passagem ao ato
é iminente. (ver nos “arquivos do autor” o artigo “Miséria do
discípulo). Para desarmar o dogmatismo falante Sócrates
recomendava humor e ironia. Em vez
de irritá-lo, contradizendo seus argumentos no mesmo nível, o
verdadeiro professor deve escutá-lo com paciência, tolerância,
disposição para o diálogo e questionamentos pontuais que
contribuem para abrir o seu pensamento. Todavia, ao fanático
mudo, que se leva muito a sério, com suas certezas absolutas,
Amós Oz recomenda apenas usarmos o humor.
Crítica na filosofia e na
ciência
Ainda que o cientista, ao fazer
ciência, sabe que não faz “a”ciência, mas tão somente ele faz
um enfoque, um ponto de vista,
uma interpretação de uma dada realidade construída por
ele, a atividade científica mais importante é crítica
constante desta produção (DEMO, 1981, p. 25 – negrito
meu).
Uma crítica apenas sustentada no
argumento de autoridade é uma falsa crítica. Pode ser sustentada
nos grandes nomes (Marx, Freud, Vigotsky, etc), mas o enunciado
pretensamente teórico não passa de uma crendice nessas
autoridades tomadas como infalíveis. Especialmente nas Ciências
Humanas e Sociais tais “monstros sagrados” do pensamento são
abusivamente evocados com uma espécie de cobertor curto para
explicar toda ordem de problemas da realidade concreta. Para
Demo (op.cit.), eles são substitutos modernos da justificação
dogmática, típica da abordagem teológica.
Karl Popper considera o
pensamento crítico como sendo não apenas um ideal básico da
educação, mas a pedra fundamental da atividade intelectual
consciente – especialmente da atividade científica. Na filosofia
das ciências, Popper considera que “o ato de criticar e a
discussão crítica são nossos únicos meios de aproximação da
verdade”.
Para esse autor, a ciência se diferencia da pseudociência não
por fornecer certezas, mas por sua abertura à crítica e a
possíveis refutações. Assim, a atividade científica está
sustentada na criticidade, mais exatamente no princípio
de autocriticidade, que Popper denomina de
“falseabilidade”.
Como já foi dito, a verdadeira
crítica não se preocupa com apontar defeitos no autor, mas se
preocupa em apresentar um saber e uma avaliação
aberta do próprio crítico sobre uma obra ou opinião. Ou
seja, ainda que use um tom avaliativo, a crítica deve evitar
tanto a pretensão de uma objetividade sobre uma obra como se
deixar levar pelos sentimentos de amor, ódio, inveja em relação
ao seu autor. Trata-se de encontrar uma medida de ser critico,
“aberto” tanto na análise como na disposição para o debate
plural.
Enquanto a ideologia é a “lógica
do silêncio, da ocultação, do camuflamento e da dominação” (CHAUI,
1982), a ciência valoriza a dúvida, suspeita do que é
apresentado como verdade absoluta, e, ainda procura fundamentar
seu argumento “crítico” em algum pressuposto teórico e/ou práxis
do sujeito crítico-e-autocrítico.
Para Eduardo Luft (2002, 2003)
“quem critica (...) tem de carregar consigo alguns pressupostos,
pois a crítica pela crítica, ancorada em um suposto vazio, é
antes um tipo de ceticismo arbitrário, uma forma velada de
dogmatismo”. Portanto, a verdadeira crítica não se preocupa em
apontar as falhas que parecem naturais somente ao outro, mas
sim, ela se ocupa com os pressupostos de sua fundamentação e de
sua própria autocrítica.
Concluindo.
A educação pode tanto ser
direcionada para a doutrinação como para a libertação. Só uma
educação voltada para a formação do pensamento crítico pode
contribuir para a libertação e autonomia do sujeito.
Portanto, há que ser
verdadeiramente crítico em relação a tudo, e nesse caso o
crítico poderia até ser acusado de criticismo, lembrando
a linha filosófica de Kant. Desde que a crítica se sustenta em
argumentos, tem fundamento, é respeitosa, tudo bem. Entretanto,
a pessoa crítica contumaz tende a ser desagradável, observações
fora de lugar e hora. Ninguém suporta uma pessoa cricrizando
tudo e todos, sempre.
Bom senso, ética-moral, elegância
no dizer, ter coragem de fazer autocrítica, devem ser
imprescindíveis ao crítico genuíno. O bom senso orienta que,
antes de atirarmos a primeira pedra crítica devemos nos colocar
no lugar do criticado. Infelizmente, no mundo globalizado,
parece estar desaparecendo essa qualidade – e arte
– de se colocar no lugar do outro, que a psicologia denomina
empatia.
Fonte: Revista Espaço Acadêmico
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